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segunda-feira, 6 de maio de 2013

Mitos e criações do mundo


 

Comecemos por constatar que na sociedade dita ocidental, o tempo é visto como evoluindo segundo conceções lineares e escatológicas, que tendem a levar à crença num fim do mundo único e definitivo e mais ou menos apocalíptico.
No entanto, esta maneira de entender o cosmos e a sua fluência temporal, sobrepõe-se a um substrato anterior e pré-cristão em que o mesmo é entendido como degenerando-se gradual e irremediavelmente, segundo ciclos que coincidem com os ritmos cósmicos dominantes.

Na verdade, ambas as perspectivas incluem a noção da inevitabilidade da deterioração cósmica. Diferem, contudo, na irreversibilidade do fenómeno.
Afinal, cíclicas ou lineares, sempre as conceções existenciais entrópicas foram entendidas como modelo da recriação periódica: de forma a obstar à dissolução definitiva no niilismo primevo. De um retorno à unidade primordial.

Niilismo primevo, origem e princípio de todas as coisas:

“No princípio Deus criou o céu e a terra. A terra era informe e vazia. As águas cobriam o abismo” (Bíblia).

“O espaço jazia imóvel e sobre o caos descansava a imensidade do mar, num silêncio absoluto. Não havia coisa em ordem, nem coisa que tivesse ser” (Popol Vuh).

A partir daí os mitos cosmogónicos relatam a Criação do Mundo. A cosmogonia primordial!
Mitos que participam duma natureza mais vasta: daquilo a que se chamam os mitos de origem. Tão diferentes quanto as culturas humanas.

Os primeiros, falam da criação do Mundo mas também dos Homens

E, quantas vezes, concomitantemente, dos governantes divinos (reis, imperadores, faraós), que remetem genealogicamente aos deuses. São personagens divinas ou semidivinas, necessárias à interação com os deuses celestes, ao equilíbrio social, à fertilidade agrícola e da natureza.
Por isso o messias hebraico tinha de radicar na “Casa de David”.
Por isso, os reis, governam “…pela graça de Deus…”

Os segundos (que incluem os primeiros, mas os sobrelevam) relatam igualmente o início não primevo, mas absoluto, de determinadas situações e realidades.
O instante em que o Deus respetivo ensinou aos Homens o cultivo do milho, entre os povos do Yucatan.
Em que o criador concedeu aos homens os inestimáveis bois; entre os Masai do Quénia.
Em que o Homem recebeu dos deuses o segredo da plantação do arroz, em Timor Lorosae.
Em que o homem foi obrigado a sofrer e a trabalhar; entre os judaico-cristãos.

Uns e outros, remetem para um novo mundo, geral ou particular, que se inicia pela primeira vez nesse instante prodigioso, mas se repete, de novo, cada vez que um ritual reconstitui, de novo, o mito.

Poder-se-á dizer, então, que para as conceções ideológicas arcaicas, mais que quaisquer outras, todo o mundo é, “composto de mudança”!
Mudança que exige, contudo, uma imersão cíclica no limbo primevo! Condição purificadora indispensável para um novo começo. Começo gerado, em sentido estrito, a partir do “nada” absoluto!
A anulação entrópica, cíclica e radical, gera assim (através de uma catástrofe como um dilúvio ou um fim flamejante como o de Sodoma) um novo mundo e uma nova existência, numa dimensão perpétua do devir.
Só o caos, afinal, é criador!

Deste emerge o mundo, na maior parte dos mitos de criação:
“E Deus criou a terra, fazendo-a emergir das águas”.
“E Deus separou a luz das trevas”.

Mas a perfeição do começo exige a destruição do velho. A transmutação exige a dissolução das formas existentes, entendidas estas, também, social e culturalmente.
E enquanto a transição se verifica, o tempo e o mundo encontram-se mergulhados na desordem, no indiferenciado. Corresponde, este, a um período em que a velha ordem já desapareceu e a nova ainda não a substituiu.

É um tempo prodigioso, mas perigoso. Em que dominam as trevas, a desorganização, as carnavalescas atitudes de subversão. Orgias populares e licenciosidades, saturnais e bacanais, inversões da ordem e desregramentos sociais eclodem como elementos dominantes.
Contudo, se tudo correr como habitual, a cada morte seguir-se-á uma nova vida. A cada ciclo, um novo ciclo.
Para isso, para garantir a eficácia de tal transformação, os Homens desenvolvem, há milénios, diversos rituais propiciatórios:
Quando o Sol se extingue ou, pelo contrário, quando manifesta o seu apogeu, acendem grandes fogueiras, saltam, dançam e entoam cânticos elegiáticos.
Quando o ano velho acaba, criam figuras (vivas ou efígies antropomorfas) que personificam o ano velho, o degenerado, o gasto, o pecaminoso.
Muitas delas eivadas de diretos ou indiretos símbolos de regeneração. Serpentes, salamandras, chifres, laranjas, bugalhos, chocalhos.

Mais ainda, podem expulsar ritualmente personagens ou animais que simbolizam o que é velho, decadente ou pecaminoso: bodes expiatórios da corrupção moral e não só!

Para a teologia cristã, contudo, o mundo tende para um fim mais ou menos absoluto, catastrófico e grandioso na sua apoteose apocalíptica.
Ao fim do mundo corresponderá, neste caso, o fim da vida na terra; seguindo-se uma outra existência eterna e beatífica, perpetuamente feliz, mas numa outra dimensão existencial.

É a linearidade histórica da teofania cristã: uma só criação, uma só vida, um só fim!

Mas o mito não é, nas culturas arcaicas, apenas uma explicação sagrada: logo verdadeira. Necessária à inteligibilidade do real!
Exerce, igualmente, uma função exemplar. Exprime, realça e codifica as crenças, salvaguarda os princípios morais e impõe-os, garantindo assim a eficácia das cerimónias e fornecendo regras práticas para uso do Homem.

Aliás, as obrigações e interdições rituais são, normalmente, nas sociedades humanas, de origem mítica, mesmo que esbatida.
Assim como Nossa Senhora só foi à missa quarenta dias depois de estar de regimento, também as mulheres “paridas” não frequentavam a Igreja antes de passado esse tempo, em toda a zona das faldas da Serra d’Aire.
As mulheres árabes pintam o cabelo de negro enquanto as raparigas o pintam de vermelho, porque Maomé assim procedeu com as filhas. Os homens, principalmente os mais piedosos, usam normalmente barba, apenas e só, porque o Profeta o usou. Deste modo Maomé, o homem perfeito, tornou-se modelo de ser e de fazer. Através dele procedeu-se ao estabelecimento do padrão ideal de conduta humana.
Do mesmo modo, o sábado judaico ou o domingo cristão constituem imitações do comportamento divino: assim como Deus trabalhou durante seis dias e descansou ao sétimo, assim devem os homens fazer.

Tal comparticipação não só torna o mundo familiar e inteligível mas ainda, e igualmente, transparente!

Em suma, os mitos revelam que o Mundo e o Homem têm uma origem sagrada, e revelam que aquilo que se pretende fazer já foi feito antes. Logo que tal é possível e que os resultados são previsíveis se se seguirem as regras prescritas.
Não há portanto que hesitar. Basta repetir atempada e rigorosamente o ritual respectivo e os resultados virão a desencadear-se da forma esperada. Inequivocamente, inevitavelmente!

Hoje como ontem, os cerimoniais continuam a reatualizar os mitos primevos.
Na liturgia cristã, a missa constitui clara reconstituição da última ceia; paradigma da refeição comunitária, solidária na sua teofagia ritual!
As “procissões dos passos” repetem hoje o percurso dramático da “paixão do Senhor”, reanimando e teatralizando o mito.
O batismo constitui repetição arquétipa do episódio iniciático verificado no Jordão e tendo como intérpretes Jesus e João Baptista.
O presépio proporciona a reconstituição do contexto espacial e da envolvência sagrada que permitem, por seu turno, a eclosão da hierofania natalícia.
Todos representam situações que tentam, de alguma maneira, recriar esses momentos primevos e absorver, como que por osmose, as singulares valências desse mesmo instante inicial.

Só existe, portanto, um meio para alcançar a salvação: repetir rigorosa e ritualmente o drama supremo da vida de Cristo.
É deste modo a liturgia recupera, ritual e sistematicamente, o tempo dos primórdios.
O mito, aqui de Cristo, é a própria fonte de vida; o sentido último da existência. Imita-se Cristo (como se imitam outras divindades), no seu nascimento, na sua vida, na sua morte, na ressurreição!

Na verdade, os corpos míticos são tantos, quantos os modelos civilizacionais humanos. Muitos relatam o início absoluto; a origem da tribo ou do clã, desencadeada a partir da ação de um antepassado, de um animal totem, dos deuses, dos imortais. Todos contam uma história. Um acontecimento que ocorreu num tempo primevo, não datável e fabuloso; o tempo do começo!

Tempo do maravilhoso que remete para um Paraíso mais ou menos primevo. Em que os animais falavam. Os deuses andavam pela terra. E o mundo era um jardim de deleite e ventura.
Paraíso que, para os escandinavos, é um lugar de lutas e heroicidades perpétuas.
Para os indígenas americanos, caçadores exímios, “o país das caçadas eternas”.
Para os hebreus e árabes (povos do deserto) um luxuriante jardim/oásis.

Resumindo, os mitos não relatam apenas a origem do mundo ou do Homem, dos animais ou das plantas, mas igualmente as circunstâncias em que o Homem se tornou naquilo que é hoje: moral, sexuado, organizado socialmente, obrigado a trabalhar ou obedecendo a determinadas regras.
Explicam, assim, realidades existentes!
São a maneira mais adequada de explicar o inexplicável.
Tornando-o parte de um todo plausível e compreensível.

As suas matrizes obedecem a simbologias senso-comum num cosmos holístico, acrónico e acientífico.
Os mundos são sempre criados pela simples vontade de entidades divinas particularmente poderosas ou através de ações míticas heróicas e/ou redentoras.
Nalguns casos, a criação corresponde a uma separação (entre a luz e as trevas, a terra e o mar, o indiferenciado e o organizado) naturalmente ordenadora de uma nova realidade.
Noutros, à emergência da mesma a partir da morte de um monstro do caos primordial.
Os Homens, são criados da terra ou da água; meios ambientes em que estes se movimentam.
Assim como o barro permite a construção de formas que o fogo consolida, a terra constitui a matéria-prima com que os deuses moldam os Homens. Insuflando-lhes, naturalmente, a vida (normalmente identificada com um sopro) que assim surge como um dom sobrenatural.

Os mitos constituem, portanto, um precedente. Cratofanias que advogam, por exemplo, a aprendizagem como algo precioso, imbuído que está da participação na sacralidade primeva. Mesmo que o sujeito envolvido seja o, mais ou menos omnipotente, criador!

Para os Abissínios, Deus criou o Homem por sucessivas tentativas no intento de vir a criar o espécime perfeito; espécie de “santo graal” para os deuses criadores.
Um humanóide cozido em demasia e outro excessivamente cru constituíram os resultados nada brilhantes que emergiram do forno divino, nas duas primeiras experiências. Desagradado, e quiçá algo frustrado, Deus enviou então um para África e outro para a Europa respetivamente, onde se encontram ainda hoje.
Finalmente (os deuses também aprendem), a terceira tentativa redundou em pleno e dela resultou um homem com o tom bronzeado perfeito... o Abissínio!

Como se vê os povos não são modestos consigo próprios. O sentimento nacionalista, refletindo atitudes e interesses étnicos, surge muitas vezes como catalisador de etnocentrismos mais ou menos radicais.
É por isso que os Hebreus, cujo Deus para seu proveito exclusivo irá “fazer o mundo em seis dias” se consideram a si, e só a si, o “Povo Escolhido”!
E os exemplos são diversos. Todos eles referem contudo um tempo primevo, como primevos são os seres sobrenaturais que impõem a ordem no caos, dando origem ao mundo, às estrelas, aos animais e ao Homem.

Em muitos dos modelos civilizacionais, tal adquire, como dissemos, a forma de um combate em que o herói mítico, normalmente uma divindade de atributos solares, enfrenta e vence a serpente/monstro marinho dando origem ao mundo organizado.
Tal implica a morte ritual e violenta do monstro ou gigante primordial, avatar do caos, de cujo corpo irá o mundo constituir-se.
É Apolo que mata Pyton a serpente marinha, como marinha é Tiamat que Marduq vence após portentosa contenda.
É Siegfrid que derrota Fafnir, Indra que decapita Târaka; a serpente marinha adormecida.
É Perseu que corta a cabeça a Medusa e mata igualmente uma serpente marinha, salvando a bela Andrómeda.
Hércules que vence a Hidra das Sete Cabeças, bem ainda como a inevitável Serpente Marinha para libertar a filha de Laomedonte, rei de Tróia.
É ainda, Teseu, que vence o Minotauro.
É Hórus, o Deus/Falcão que trespassa a cabeça de Tyfon ou do dragão Apófis. O próprio Yahwé que cria o universo após a vitória contra o monstro Rahab.
É o nórdico Thor que combate a “Serpente do Mundo”. É o Leviathan, são as Górgonas, é Quetzalcoatl; a “Serpente Emplumada” dos Astecas e Toldecas.

Na realidade todas estas criaturas, monstruosas e primordiais, constituem na sua origem os princípios turbulentos e agitados do caos, postos em ordem pelos deuses solares. Serpentes e dragões, monstros marinhos gigantescos e terríveis, símbolos do tempo antes dos tempos, avatares do oceano primordial cujo desaparecimento vai ordenar o cosmos, cujo sangue fertiliza a terra, cujo corpo forma ilhas e continentes e proporciona o eclodir da vida, do Homem, muitas vezes dos próprios deuses!

Tais monstros constituem, portanto, o catalisador indispensável de qualquer ação heróica. Tais combates refletem-se na Terra, pois esta é o “imago mundi” ou espelho do cosmos. Aqui, como lá, eclode a ordem da criação, da justiça e da civilização, sobre a desordem, a indefinição e a pré-organização.

Combates míticos cujas reminiscências chegam até nós do fundo dos tempos através dos diversos filtros sincréticos, cristianizados sob a forma de lendas como Santa Marta e o Dragão ou, mais frequentemente, “São Jorge e a serpe”.
Aliás, em certas zonas do norte do país, ainda hoje dá lugar a simulações bélicas entre o herói/santo e o terrível dragão, hoje transformado num simpático robot artesanal provido de rodas, que o rapazio conduz no meio do maior alarido e brincadeira.
É a “Coca”, condenada a ser vencida anualmente pelo intrépido guerreiro que a tradição considera ser São Jorge. Ritual que expressa uma sempre renovada hegemonia cristã face a um arquétipo do caos, reconvertido de alguma forma, hoje em dia, em símbolo do mal e do pecado.
 
Combates míticos que sobrevivem, ainda, nos confrontos rituais entre “velhos”, “diabos”, “caretos”, “chocalheiros”, “carochos” ou “farandulos” do nordeste transmontano.
Todos eles simbolizam a vitória da luz sobre as trevas, da ordem sobre o caos, da criação sobre o niilismo primevo, do Sol sobre as forças entrópicas que tendem a anulá-lo e a dissolver a sua energia.

Marcam a transição do estado pré-cósmico; o oceano primevo, caótico, homogéneo e impassível. Caos que há-se ser ordenado pela energia primordial que se liberta de uma grande catástrofe ou epopeia.     
 
Nalguns casos, o monstro reptiliano é substituído por uma divindade, que assume assim o papel de fertilizador/redentor. É o que acontece com Ossíris que, morto e esquartejado por Set, vai através do seu corpo, espalhado pelos quatro cantos do mundo, fecundar a Terra e regenerá-la.
É o que se passa com Jesus, o cordeiro imolado, cujo corpo e sangue absorvidos pelo Homem irão dar origem a um novo mundo que a “nova aliança” simboliza.
O herói ou deus através do seu sacrifício, voluntário ou não, fará fluir as virtudes da ressurreição sobre toda a humanidade.
Efetuando permanentemente o sacrifício como Jesus ou Mitra ou renovando-o ciclicamente como Ossíris, Orfeu ou ainda Dionísio, o deus morre e renasce, deste modo revelando o caminho para a ressurreição, logo salvação!

Assim, todos estes mitos, bem ainda como os de Átis/Tammuz ou de Prometeu, cujo sacrifício é condição necessária à obtenção do conhecimento e à assunção do Homem como ser racional de corpo inteiro, marcam um modelo de rutura ou de cisão que é origem do próprio devir.
Porque o mundo tem de ser periodicamente renovado, recriado, configurando assim um eterno e inevitável retorno.

Ou um eventual e aterrorizante apocalipse final!
 
Que marca o fim dos tempos!
E uma existência de recompensa ou castigo num eventual “reino de Deus” mais ou menos paradisíaco!