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Espaço de comunicação que se espera interactivo, este é um instrumento que permite estar próximo de amigos,presentes e futuros, cujas contingências da vida tornam distantes mas nem por isso menos merecedores de estimas e afectos.


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quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Entrevista concedida ao Jornal Correio do Ribatejo, de Santarém, acerca do "Manifesto contra a vinda do Papa a Fátima" em 2017.



- O bispo da Diocese de Leiria/Fátima afirmou que a petição contra a visita do papa à comemoração do centenário das aparições não lhe tira o sono.
Não conheço a dificuldade do Bispo de Leiria para cair, quotidianamente, nos braços de Morfeu. Mas acredito que, de qualquer maneira, não perca o sono por isso.
Aliás, assumida como algo “contra”, esta é uma ação que provavelmente só favorecerá a Igreja. E a fará desempenhar, mesmo que passivamente, o papel de vítima.
Suponho que não é isso que se pretende, mas…  tenderá sempre a criar uma certa ideia de intolerância.
- Mas, qual a sua opinião sobre o referido manifesto?
Simplesmente, a seguinte: qualquer pessoa tem o direito de ser crente: cristão, hindu, muçulmano, confucionista ou afim.
Qualquer crente tem o direito de acreditar num qualquer dogma, episódio taumatúrgico, hagiológico ou pressuposto metafisico; doutrinário ou não.
E, naturalmente, de assentar, aí, o seu foco devocional.
Qualquer conjunto de crentes tem o direito de se organizar. De realizar os seus cerimoniais. De convidar, quem quiser, a partilhar os mesmos.
Mais, ainda, se for o seu líder institucional e espiritual.
- Mas, sendo este um Papa que se tem apresentado como progressista não era de esperar que tivesse outra postura?
Ser um papa que vem caracterizando o seu pontificado por ideias bem menos conservadoras (incidindo, afinal, em situações sociais que o liberalismo atual tornou particularmente desfasadas do conservadorismo doutrinário cristão), não implica que o mesmo possua qualquer posição diferente da “entourage” católica no que respeita a Fátima.
Primeiro, porque Fátima é hoje a grande vanguarda das ações pastorais (e não só) da Igreja, corporizando, no culto da Senhora de Fátima, uma singular experiência cultual universal.
Segundo porque, tanto os fenómenos de Fátima como qualquer outro dogma católico, assentam em pressupostos de consagração que se baseiam, quase estritamente, na fé; sendo, naturalmente, exteriores a qualquer eventual necessidade de autenticação científica.
Insuscetíveis, assim, da sua validação. Logo, da sua invalidação.
Deste modo, as interpretações científicas, nesta área do pensamento, não são partilhadas, (nem poderão ser), pelos cristãos; seja o mais humilde dos crentes, seja o próprio sumo pontífice. Pouco sensíveis afinal (de diferentes modos mas idênticas naturezas) a outras formas de entender a realidade.
- Poder-se-á dizer que se exige uma discussão pública dos milagres de Fátima?
Estudar Fátima pode ter como resultado diversas conclusões naturalmente diferentes daquelas que a Igreja partilha. Foi aliás o que (dir-se-ia, inevitavelmente) aconteceu com o estudo que realizei “Videntes e confidentes; Um estudo sobre as aparições de Fátima”.
Discutir os testemunhos, razões, ambientes, condições políticas, implicações sociais e psíquicas, enquadramentos culturais (e por aí adiante) podem e devem fazer-se. E, aliás, têm-se feito pouco.
Não existem, afinal, assuntos tabus.
Agora discutir os “milagres”…
Poder-se-á até dizer, em rigor, que os milagres não se discutem!
Face às condições atrás citadas (ou outras) interpretam-se cientificamente ou assumem-se intuitivamente como algo que está para lá (ou, se quisermos, para cá) das análises metodológicas e científicas. Apenas isso!
Podemos até ensaiar argumentos de uma e outra razão e sustentação. É sempre contudo, em grande parte, uma conversa de surdos.
São outras formas de perceção. Mais intuitivas, mais emocionais; às vezes psicossomáticas.
Não são confrontáveis com as validações dos padrões culturais que a ciência estuda.
E vice-versa.
- Seja como for, acha que a vinda deste Papa, hoje, a Fátima, se justifica?
É algo que devemos perguntar aos católicos.
Por mim, não vejo porque não. É o centenário daquilo que, para a Igreja é, hoje, o “grande altar do mundo”. Por menos, já outros nos visitaram.
Agora, o que eu acho, sim, é que não nos compete intrometer na vida de uma organização religiosa (privada, esclareça-se) que, como é natural, assenta (como todas as outras) os seus pressupostos doutrinários em acontecimentos (episódicos ou não) interpretados taumaturgicamente e, naturalmente, suportados pela fé.
Na verdade, as aparições de Fátima não são, em rigor, “imperativos de fé”; leia-se dogmas essenciais de fé. Mas para muito boa gente, neste mundo, funcionam como tal.
E todos os crentes católicos (como todos os outros; cristãos ou não) devem-nos merecer o maior respeito.
É que a nossa sociedade não funciona (em nenhuma dimensão, esclareça-se) apenas na vertente científica. Muito longe disso.
É um facto que, nela, a ciência vem adquirindo prestígio acumulado. Mas isso não impede que a maioria esmagadora da população mundial se continue a assumir como crente.
Desta e doutras religiões.
- Pode dizer-se que Fátima é resultado de um logro orquestrado pela Igreja?
Suponho que não! Pelo menos não foi essa a conclusão a que cheguei quando a estudei.
Acho que se tratou, sim, do natural aproveitamento de um dos inúmeros fenómenos de visionação/alucinação que surgem preferencialmente em épocas de grande dramatismo social e político como aconteceu, precisamente, no início de novecentos, com a participação de Portugal na Grande Guerra e com o conflito entre a Igreja e o Governo Republicano.
Agora, mais importante que isso, é perceber-se que (desde que canonizados) não existem dogmas ou episódios transcendentais falsos em qualquer religião.
Por definição, são todos verdadeiros. Porque são sagrados e, em última instância, fruto da ação e vontade de Deus.
Isto na perspetiva do crente; como não podia deixar de ser.
Dito de outra maneira: mesmo que consideremos, um dado caso, como um embuste ou orquestração (e independentemente das intenções manifestas e das consciências em presença) a partir do momento em que o mesmo é aceite como sagrado/divino torna-se, literalmente, verdadeiro.
E pode passar a constituir-se como foco operativo devocional e divinatório.
Como uma erupção do sagrado na teia social do profano. Uma hierofania; se não, uma epifania divina.
Mais ainda: sem citar exemplos para não ofender ninguém, é quase inevitável que os grandes dogmas religiosos (desta, como de qualquer outra religião), assentem em fundamentos bem mais frágeis, ainda, que os de Fátima!
Apenas são mais antigos, estão já prestigiados pela tradição, integrados doutrinariamente e adequados por uma hagiologia milenar.
Tornaram-se verdades absolutas que enformam os nossos referenciais místicos e míticos e que hoje não podemos e, em grande parte não queremos, questionar.
Afinal, a possibilidade de os analisar de uma forma minimamente sistemática é agora, por razões óbvias, praticamente nula.
Pois, deles não temos acesso aos documentos originais (nem nada que se pareça) ao contrário do que, apesar de tudo, acontece com Fátima.
- Mas os subscritores do manifesto falam em enganar o povo?
Não gostaria de factualizar a questão mas, o argumento de “engano do povo” pode, como dissemos, ser afeto a todos os dogmas religiosos (considerados, esses sim, como imperativos de fé) desta ou de outra qualquer religião.
A nossa opinião sobre isso é naturalmente respeitável mas, é apenas isso; uma opinião.
E se o nosso critério forem os imperativos da ciência, estes devem ser considerados como “um” critério; não “o” critério.
Se “o” fosse, então todos os fundamentos de qualquer religião considerada seriam, inevitável  e obrigatoriamente,  postos em causa.
Mesmo que não cristãos!
E, se cristãos, mesmo que exteriores a Fátima.
A este nível percepcional (volto repetir) as razões da ciência não são aplicáveis.
A não ser, por exemplo, as razões das ciências sociais como a antropologia do sagrado ou a sociologia das religiões. Mas, a estas, não compete fazer juízos de valor sobre as sustentações doutrinárias mas, sim, conhecer os tempos e os modos das construções e evoluções dos sistemas religiosos.
- Acha que persiste um conflito entre a ciência e as religiões?
Já houve bem mais. Persistirá sempre, claro. Mas hoje (no nosso país, esclareça-se) vivemos numa sociedade, cujo senso-comum é claramente de tolerância; pelo menos como pressuposto.
Como cientista social defendo, naturalmente, um incremento crescente da ciência.
Mas, igualmente, o direito de cada um acreditar naquilo que considera mais adequado. Sem pressões, nem paternalismos. E, convenhamos, prefiro uma sociedade multivalente a uma  estritamente homogénea.
Afinal, as religiões cumprem papéis sociais e psicossociais bastante importantes para muitos.
E até porque, podendo hoje a ciência, sustentar técnica e digitalmente, grande parte das atividades humanas, nem sempre (como os últimos tempos têm mostrado), é suficientemente dotada de um necessário e suficiente humanismo.
Diria mesmo mais; tenho muitas dúvidas que um hipotético (e, naturalmente, improvável) desaparecimento das religiões, gerasse uma sociedade melhor.
Tenderia, de alguma forma, a constituir-se uma ditadura do pensamento científico. E ditaduras, sejam elas quais forem, é algo que dispensamos.

- Se tivesse que deixar uma ideia final sobre este assunto, o que diria?
Tentaria resumir o aspeto essencial do mesmo, de forma o mais simples possível.
Considerando que, se a defesa de um pressuposto dogmático (naturalmente não compatível com a dúvida metódica e a racionalidade analítica associada) constituir um logro, então toda a Igreja e todas as organizações religiosas (assentes que são nos mais diversos dogmas, feitos doutrina ou não) terão de ser sujeitas à mesma depreciação.
Contudo, como já foi dito, a perspetiva analítica e metodológica constitui, apenas, uma forma de ver o Mundo. Eventualmente mais avançada. Se quisermos, esclarecida.
Mas, com certeza, não absoluta.
E não, necessariamente, mais legítima e respeitável que a perspectiva de um qualquer crente.
Afinal, nas sociedades humanas, nem todo o saber assenta nas razões da razão.
Alguns suportam-se em razões de inspiração, pressentimento e intuição. Vistas, facilmente, como místicas e iluminadas.


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Bloqueemo-nos uns aos outros



A problemática do Centro Histórico de Santarém está a ser, pelos vistos, uma história interminável, com peripécias recorrentes que só mantêm, afinal, uma linha de continuidade; a estrutural e crescente degeneração do mesmo.
Estrutural desertificação e decadência socio-económica a que nos vamos gradualmente habituando. E para a qual vamos sugerindo soluções a maior parte das vezes impraticáveis (ou, mesmo, contraproducentes), mas que descansam e aquietam consciências.
Tudo isto nos vem à lembrança na recente tentativa (pelos vistos pouco convicta) de abrir ao trânsito o, assim chamado, largo do Seminário.
Vamos pôr as coisas de maneira simples: Gosto de ver carros no Largo do Seminário? Não!
Acho que os carros devem passar pelo Largo de Seminário? Sim!
E, porquê tão ambivalente opinião?
Porque, embora parte de um todo muito maior, requerendo soluções de fundo e integradas (que ninguém está interessado em desenvolver porque seriam sempre polémicas e, pela sua temporalidade alargada, pouco condizentes com os calendários eleitorais), tal situação é uma das poucas que se podem tomar imediatamente. Desde que haja um mínimo de vontade política (coisa que escasseia por estas bandas) e, já se vê, alguma clarividência.
Porque, também, as problemáticas urbano/patrimoniais de Santarém são substancialmente diferentes da maioria esmagadora das outras cidades. E as suas soluções não são, em grande parte, aqui aplicáveis.
E ainda, afinal, porque, como defende a sabedoria popular, o ótimo é inimigo do bom.
Os argumentos contrários a esta opção, na dita reunião esgrimidos, são bem exemplo de quem, afinal, não está à espera que a coisa alguma vez mude. Atentemos:
Argumento; poluição: Que eu saiba, será sempre maior com os carros a terem de dar a volta à cidade, percorrendo subidas acentuadas até regressar, quase, ao ponto de partida. A não ser, que algumas centenas de metros ao lado, já se possa poluir à vontade.
Argumento; esplanadas: acredito que os donos das explanadas (uma, duas?) naquele troço, cinquenta ou sessenta metros da Rua Serpa Pinto, se sintam afetados. Mas, se posto em alternativa, o beneficio coletivo tem de ter sempre primazia. E, afinal, para quê esplanadas (essas e outras) se não existem pessoas (e existem cada vez menos) que se sirvam delas?!
Argumento; tirar os carros: Não se preocupem que há, no C. H., cada vez menos carros. Naturalmente, em grande parte, atrás dos carros têm vindo as pessoas.
Argumento; abrir o C.H. às pessoas: Quais? Aquelas que deixam os carros no Choupal ou no Largo da Feira (por enquanto) e têm de se deslocar a pé, uma hora ou duas, para ir e voltar ao C.H.? E fazer o quê, se o comércio e serviços já quase não existem?
Por mais explanadas que existam ou venham a existir!
Sabem o que é mais perverso neste argumento? É que quando menos precisarmos de nos deslocar ao C.H., mais fácil é (ao argumento, já se vê) utilizá-lo!
Até chegar uma altura (já não muito distante) em que já não precisemos de todo de lá nos deslocar. E, aí, as questões do tempo e espaço de deslocação deixam de ser problema.
Finalmente, o argumento; transportes públicos:
Esta é a grande questão. De facto já deviam existir, há muito, transportes públicos. Adequados, naturalmente, às especificidades do espaço urbano em presença.
Afinal se a solução terá de ser sempre, como se disse, integrada e abrangente, este devia ser, não obstante, o grande desiderato enquadrador.
Apetece, fazermo-nos de ingénuos e perguntar, então porque é que não existem?
Porquê a introdução dos parquímetros que, há uma década, reputei de “última machadada no Centro Histórico (…) se não fosse acompanhada de uma rede adequada de transportes”, não acarretou os mesmos?
Nem, afinal, depois disso?
Acho que a razão é muito simples: para lá, naturalmente, da escassa convicção política, o problema maior é que, tendo em conta o estado de desertificação a que o dito está votado (sem habitantes, comércio, serviços e afins) quaisquer transportes são, simplesmente, insustentáveis.
E são bem mais hoje do que eram nos tais dez anos atrás!
A não ser, é claro, que se esteja disposto a sustentar, conjunturalmente, eventuais défices de exploração. Enquanto, eventualmente, se forem criando ações tendentes a minorá-los. Que neste caso terão de ser sempre (pelo menos) a médio-prazo.
Então, não se deve fazer nada?
Deve-se; claro. Desde logo identificar e diagnosticar a situação; criando, talvez, um órgão independente dos mais variados (e alguns deles avariados) grupos de interesses que pululam nesta cidade.
Depois estudá-lo. Conjugar vontades políticas. Tentar obter apoios necessários.
E não continuar com este faz de conta que faço e não faço. Faz de conta que quero e não quero.
Afinal, mais uma vez, o executivo municipal pode respirar de alívio e responder a eventuais críticas: nós quisemos fazer. Os outros (mentecaptos) é que não nos deixaram!
Enquanto a oposição pode, novamente, congratular-se de, com a sua coragem e discernimento, ter impedido, novamente, um hediondo crime ambiental.
O jeito que dá bloquearmo-nos aos outros! 
E se (já agora), como afirmou o ex-Presidente da Câmara de Óbidos num rasgo de inspiração, num recente debate pretensamente direcionado para esta problemática*: “os centros históricos são gigantes adormecidos”, no caso de Santarém aplica-se, também, a frase imortal de um igualmente inspirado filósofo que o tempo, contudo, já esqueceu: “O sono é a antecâmara da morte”!

*Aliás, fazer um debate sobre o C.H e trazer como convidado este autarca para tecer considerações sobre medidas aplicáveis a Santarém (pois se não forem aplicáveis, não são para aqui chamadas) constitui mais uma das, atrás referidas, estratégias de faz de conta. Será que é preciso explicar porquê?

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Fandangando


António Ceia da Silva, responsável pela Associação Regional de Turismo do Alentejo e (parte do) Ribatejo, revelou há algum tempo atrás, no Cartaxo, estar em curso a candidatura do fandango ribatejano a património mundial.
Na altura escrevei um texto de opinião em que considerava que “a divisão do Ribatejo por associações regionais de turismo (de que é, essencialmente, apêndice), recebe como compensações, este tipo de rebuçados que servem para comprar consciências e adormecer resistências; num processo administrativo de morte anunciada”.
Afinal, o objetivo primeiro é candidatar o “montado de sobro” a património da humanidade e, a candidatura do fandango, uma espécie de cenoura que se coloca à frente do burro para que ele siga na direção pretendida.
São, como se dizia aí, “as cenouras do nosso percurso muar”.

Falava-se também, a talhe de foice, do modismo das candidaturas; afinal uma forma relativamente fácil e eficaz de promover aspetos particulares da cultura tradicional.
Que, contudo, pela sua recorrência, desvaloriza os reconhecimentos entretanto conseguidos ou a conseguir. Afinal, este tipo de reconhecimentos só serão importantes se escassos e difíceis de alcançar. Tal como os milagres; só são relevantes se forem raros.

Seja como for e no que respeita à dita Candidatura, dela, só por si, não virá, com certeza, grande mal ao mundo.
Resta saber como é que o fandango vai preencher o requisito que a UNESCO obrigatoriamente exige: o do objeto de candidatura ter de ser um padrão cultural vivo.
De facto, para que seja reconhecido como património mundial será assim necessário,  (como, aliás, aconteceu com o cante alentejano) criar aquilo a que podemos chamar um simulacro vivencial. Algo que se possa vender como se de uma realidade ainda viva; mesmo que, algo moribunda, se trate.
Apesar do objeto de candidatura ser, agora, uma dança, com todas as implicações lúdico-sociais daí decorrentes. Suponho, assim, que conseguir convencer os técnicos da UNESCO de que o Fandango é uma dança ainda hoje viva é, com certeza, bem mais difícil.
Estou contudo a imaginar, que se vão criar iniciativas diversas que ponham as pessoas a dançar, nalguns casos sem indumentária tradicional, em ambientes reais e com menos preocupações formais. Tudo devidamente filmado, fotografado e mostrado; para UNESCO ver.

Contudo, o fandango ribatejano1 está morto e enterrado (leia-se fossilizado) há, sei lá, seis/sete décadas!
E, não só não ressuscitou desde então, como não ressuscitará com o processo de candidatura, tanto no pós como no durante.
Afinal aquilo que os agrupamentos folclóricos hoje fazem é apresentá-lo (como aliás as outras danças, cantigas, indumentárias e afins; do seu reportório), como simples reconstituições; resultantes de formas, quase sempre prosaicas, de pesquisa etnográfica. Dito de outra maneira; divulgam-no como simples referencial lúdico de memória1.
Importante, convenhamos, para a compreensão e difusão das nossas raízes culturais (pelo menos parte delas) mas, apenas isso.

Recentemente os patrocinadores da Candidatura propuseram ao Fórum Ribatejo o estabelecimento de uma parceria que passe por integrar na dita, elementos do Fórum, com a área relacionados.
Naturalmente os estudos que publiquei, há alguns anos, como o meu amigo Bertino Martins “Fandango; Raízes, disseminação e diversidade“, em 1992 e “Fandangos” em 2005, (afinal os únicos alguma vez publicados sobre a matéria) levaram a que fosse, igualmente, convidado.
Convite que agradeço mas, declinei, por uma razão muito simples: a minha natureza de investigador (se quisermos, académico) não é conciliável com a participação num projeto (supostamente um estudo) em que o rigor científico será, como se disse, inevitavelmente sacrificado, para que o resultado final possa ser embrulhado em roupagens de faz de conta!
O que é, como se sabe, uma subversão completa do pressuposto investigativo.

Esperemos, pelo menos que a dita candidatura consiga ultrapassar a exagerada estilização que enforma, ainda hoje, grande parte das respetivas representações ditas folclóricas.
E não constitua, afinal, a consagração (em memória futura) do erro e do equívoco!
Estilização, esclareça-se da qual podemos equacionar cinco situações/padrão que, no seu conjunto, fazem (em grande parte) da atual imagem pública desta dança, uma completa mistificação que, o estereótipo, paulatinamente foi construindo.
Cinco equívocos que (citando a obra “Fandangos”, atrás referida) “no seu conjunto, têm moldado o senso comum contemporâneo construído em volta de uma representação paradigmática do Fandango que, convenhamos, com as suas raízes ancestrais possui hoje, apenas, circunstanciais semelhanças”.
E quais são eles afinal?
- Em primeiro lugar, que o Fandango não é uma dança mas, sim, um tipo de danças!
Como acontece com qualquer dança ribatejana ou não, proliferam as variantes de fandangos por todo o Ribatejo,... por todo o país!
Fandangos dançados (noutros tempos) em roda, em par ou em quadra. A três por oito ou a dois por quatro. Expressando competividades explícitas ou não. Cantados ou não. Dançados individualmente, em pares ou em grupos. Com ou sem atributos de complexização coreográfica. Nas tabernas ou nos bailes. Nos campos ou nas “modas”.

- Em segundo, que à semelhança de muitas outras danças, igualmente vistas como regionais, o Fandango não é uma dança estritamente ribatejana! Como os viras não são só minhotos, os corridinhos não são só algarvios, os “bailaricos” não são só saloios, as "saias" não são só norte-alentejanas!
Existem fandangos em diversas regiões, principalmente na Estremadura e no Minho mas, também, nas Beiras, nas Ilhas e até no Alentejo. Existem, a jusante, inúmeros fandangos em Espanha. A montante, diversos no Brasil.

- Em terceiro, que o Fandango não é, como se poderia julgar, uma dança em que o canto esteja, necessariamente, ausente!
À semelhança do que era comum nos teatros lisboetas de setecentos (donde o mesmo proveio), muitas versões eram, normalmente, cantadas. Não só no Ribatejo (onde, embora não dominantes surgem, ainda, algumas versões) mas, tanto quanto se sabe ainda, na Estremadura e nas Beiras, e igualmente, como modelo usual em terras minhotas. Também no Brasil e em Espanha tal situação era/é frequente.

- Em quarto, que o Fandango no Ribatejo não era só dançado por homens mas, indiferenciadamente, por homens e/ou mulheres. Isto tanto no bairro onde (embora relutantemente) se foi há mais tempo aceitando, como na charneca ou na lezíria2. Como acontecia no Vale de Santarém, em Torres Novas, nos Riachos, no Pego de Abrantes, no Cartaxo, na Glória do Ribatejo, em Benavente, na Moita, na Azambuja, em Alcanhões, etc.,...

- Em quinto (e talvez, hoje, o mais importante), que o Fandango não era, como hoje se julga, uma dança de movimentos rígidos, invariáveis, quase hieráticos mas, pelo contrário, uma dança cujas variações se expressavam, essencialmente, a nível coreográfico.
Coreografias feitas de passes criativos e personalizados, imagem de marca de cada fandanguista e dependentes, em última instância, da criatividade, dinâmica e resistência física daqueles.
Paradoxalmente, a mais espontânea das danças ribatejanas, está hoje (em termos de representação), transformada num modelo coreográfico que se caracteriza pela hieratização quase absoluta. Sendo assim, curiosamente, a mais estereotipada.
E, adiante-se, mal estereotipada.
A tradicional sucessão de passos e contrapassos, que só tinha limite na originalidade e criatividade de cada um (e constituía um elemento basilar do vetor competitividade), é agora substituída por uma variante uniforme, cuja eficácia reside nas variações melódicas que o acordeão cromático proporciona e na rapidez da execução, obrigatoriamente breve e repetitiva mas, até por isso, enérgica e vibrante.

Seja como for, se a dita Candidatura aceitar, pelo menos, propor como candidato o fandango ribatejano na sua natural diversidade e não apenas o conhecido estereótipo, o Fórum Ribatejo tal como foi acordado, irá participar na mesma.
Para isso ficarem “indigitados” o Nelson Ferrão, o Ludgero Mendes e o Daniel Café que, embora cientes desta incongruência sentem, com certeza, que o seu contributo pode vir a constituir uma significativa mais-valia.
Até, porque na lógica algo perversa (mas usual), dos que “os fins justificam os meios”; a candidatura pode vir a constituir (como é normal nestes casos) uma oportunidade para divulgar e promover o fandango e, através dele, o Ribatejo.
Seja este, ou não, reconhecido.

2 - Situação que, por exemplo, não acontece com grande parte dos fandangos brasileiros entretanto transformados em danças (muitas vezes rituais) ligadas, a festas religiosas ainda existentes como as de São Gonçalo ou do Divino Espirito Santo. Em que, inclusivamente, servem propósitos operativos de pagamentos de promessas
2 – Desde que naturalmente não fosse dançado nas tabernas. Que, como se sabe, as mulheres não frequentavam.