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Espaço de comunicação que se espera interactivo, este é um instrumento que permite estar próximo de amigos,presentes e futuros, cujas contingências da vida tornam distantes mas nem por isso menos merecedores de estimas e afectos.


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sábado, 15 de outubro de 2016

O Inquérito



A notícia rebentou como uma bomba e rapidamente perpassou, feita um tufão, as diversas repartições municipais. Uma deliberação do executivo tinha autorizado a construção duma urbanização num local de paisagem protegida do parque natural apesar da lei proibir aí, terminantemente, construções privadas de qualquer natureza.
Parece que alguém se “esqueceu” de solicitar ao ministério da tutela o respectivo parecer e os serviços técnicos apresentaram o projecto como possuindo todas as avalizações necessárias induzindo em erro o executivo. Diz-se!
As cópias que constavam do processo foram, ao que consta, forjadas. A situação nunca seria, contudo, descoberta se alguém, pelos visto insatisfeito com o negócio (dizem as más línguas) não tivesse enviado uma denúncia anónima para os jornais. 
O pânico está instalado! São declarações e mais declarações de técnicos e políticos, contraditórias entre si e mais contraditórias ainda com a situação, cujo controlo se esvai rapidamente por entre os dedos.
Com a chegada do “Sr. Presidente” consegue pôr-se alguma ordem no reboliço. É “aconselhado” aos diversos responsáveis departamentais especial contenção nas relações com a imprensa. O “no coments” torna-se lugar comum.
O chefe do departamento de obras é chamado de urgência e encontra-se reunido há já duas horas com o “Sr Presidente”. Do que lá se passa nem uma nota respiga.
Por corredores e gabinetes as conversas em surdina continuam bichanando de boato em boato.
Finalmente a porta abre-se para entrar o Dr. Marcos, o assessor, um jovem executivo de grossas lentes oculares e da mais canina lealdade para com o “seu” Presidente. Dois minutos depois, volta a sair, apressado, aparentando os nervos em franja, e reentra no seu gabinete  rapidamente fechando a porta.
Porém, pouco depois a novidade começa a circular: o “Sr. Presidente” marcara uma conferência de imprensa para as onze horas!
À hora prescrita, e como era previsível, os jornalistas encontram-se presentes em grande número, ávidos de um escândalo que vem mesmo a calhar para animar uma vivência política nos últimos tempos singularmente letárgica.
Aparentando uma expressão tensa mas determinada, o “Sr. Presidente” entra na sala. Debaixo do braço traz uma pasta com documentos que aparentam ser técnicos e oficiais. Senta-se, fixa o olhar no auditório e inicia imediatamente uma intervenção simples e concisa.
Começa por revelar a enormidade da fraude de que só agora tem conhecimento. Apela para a sua conhecida e nunca questionada honradez como penhor da sua palavra. Qualifica de “inqualificável” e “criminoso” o episódio em questão. Manifesta a mais firme determinação de “abrir um Inquérito para apurar todas as responsabilidades e punir exemplarmente os responsáveis”.
“É o bom nome da instituição municipal que o exige! É a honra de todos os que trabalham aqui que o reclama!”
Aqui chegado, o discurso sofre abrupto corte, a voz embarga-se como que de emoção, as palavras recusam-se a sair como que incapazes de exprimir toda a angústia e indignação que lhe vai na alma!
O auto-domínio, contudo, acaba por se impor. Um forte suspiro despoleta, finalmente, a tensão acumulada:
“Iremos até ao fim! Custe o que custar! Doa a quem doer!”
E, num gesto arrebatado de dramática teatralização o “Sr. Presidente” ergue-se rapidamente, deseja a todos, ainda um pouco atónicos, um tenso “bom dia” e, antes que os jornalistas recuperem totalmente, abandona bruscamente a sala.
O Dr. Marcos segue-o apressadamente. Os seus olhos pitosgas estão carregados de interrogações.
“Mas, Senhor Presidente”, e o Inquérito? Como é que vai ser?”
Aquele, que parece estranhamente ter perdido toda a tensão, pouco afrouxa o seu passo firme e cadenciado e responde displicentemente:
“Ora, os inquéritos nunca são conclusivos!”
De repente pára e, coçando como que distraidamente o bigode, adianta num esgar levemente trocista:
“Se for preciso abrimos depois outro inquérito para averiguar porque é que diabo é que este não foi conclusivo”
Vencido, mas não convencido, o Dr. Marcos, pisca os olhos repetidamente, sintoma nele de especial nervosismo! Vê-se que pretende interpelar o “chefe” mas que não se atreve.
Apercebendo-se disso o “Sr Presidente” olha fixamente o seu fiel subordinado, suspira resignado e coloca-lhe paternalmente o mão sobre o ombro:
“Não te preocupes”, aconselha-o, “o tempo tudo apaga” e, parafraseando o dito popular, adianta enfaticamente, “de inquéritos velhos ninguém fala e, os novos,… deixam-se fazer velhos!”

Aurélio Lopes

A recepção

Desde que teve notícia da visita do líder, o “Sr. Presidente” nunca mais teve descanso! 
Afinal, é uma honra para o Município receber em pessoa uma personalidade com a dimensão política do Secretário Geral do Partido e, o “Sr. Presidente”, tem esperanças fundadas que ele se demore aí algumas horas, tempo, pelo menos, para uma visita ao recentemente remodelado Mercado Municipal, para o previsto banho de multidão. 
Quem sabe, uma visitinha relâmpago aos velhinhos do Centro de Dia, ou até mesmo uma breve inauguração da Segunda Fase da Ala Este da nova Escola Secundária. É a oportunidade esperada de, através dos média nacionais, promover o Concelho e, naturalmente, promover-se um pouco a si próprio. 
Afinal, ninguém lhe pode levar a mal por não gostar de morrer sem experimentar outras funções políticas. Governativas, porque não?! Tudo depende da recepção nos Paços do Concelho, onde vai estar toda a “entourage” do Partido e, que o “Sr. Presidente” espera, venha a constituir um marco, na presente campanha eleitoral. 
Por ordem presidencial todos os vereadores da maioria irão estar presentes, bem como os deputados municipais, presidentes de junta e respectivas acessorias. “Espíritos Santos de orelha” bichanaram aliás nos últimos dias, aos ouvidos de cada um, a conveniência pessoal de responder à chamada. 
A Banda da Sociedade Filarmónica ocupa já o seu lugar na Praça. O Grupo de Danças e Cantares “Os Malmequeres da Ribeira”, espera ordeiramente pelo seu momento. 
Finalmente, o “Sr, Presidente” saí do gabinete e dirige-se à porta principal do edifício municipal. Sabe de fonte segura que a caravana do Secretário Geral não tardará a chegar. 
O séquito presidencial planta-se assim à entrada do edifício, dando um último retoque no vestuário protocolar, esforçando-se por assumir um ar circunspecto, intercalado de comentários de circunstância sobre as prestigiantes circunstâncias do momento. 
Os eternos candidatos a “boys” vão ocupando as posições mais favoráveis às prováveis objectivas dos jornalistas que acompanham a caravana. 
O “Sr. Presidente”, contudo, não permite grandes ultrapassagens, chamando a si os “delfins” do momento, a pretexto de um amigável cumprimento pessoal, acompanhado de uma tirada pretensamente humorística mais ou menos retórica. 
O tempo vai passando. O frio agreste que se faz sentir, começa a fazer notar os seus efeitos! O “Sr. Presidente” bate o pé para aquecer, dando origem a diversos outros “sapateados”, abotoar de casacos e ajeitar de cachecóis e lenços de pescoço. 
A aproximação de um mercedes negro leva o “Tolas”, acessor para todo o serviço, estrategicamente colocado como sentinela no fim do quarteirão, a desencadear um falso alarme, gerador imediato de um frenesim de compostura e pose formal, não sem que, aqui e ali, se revele alguma tensão, decorrente de disfarçados, mas algo abusivos, posicionamentos estratégicos. 
Resposta que é a normalidade, surgem, aqui e ali, alguns risinhos forçados, à mistura com comentários irónicos respeitantes ao “golpe de vista” do “Tolas” e à sua conhecida condição de antigo árbitro do Inatel. O frio aperta. O “Sr. Presidente” exaspera-se. Da caravana, nem novas nem mandadas! Hesita se há-de regressar ao seu gabinete. Sempre está lá bem mais quente, pensa com os seus botões. Desiste, contudo, ao olhar para o metediço do jornalista da “Gazeta da Vila” que, uns metros mais à frente, esboça já um leve e sardónico sorriso! 
Finalmente, um automóvel com cariz de carro oficial, surge ao fundo da praça. Aproxima-se rapidamente e pára em frente à pequena multidão. Os seus vidros fumados não permitem ver os ocupantes. 
Nesta altura, conforme combinado, a Filarmónica dá início aos primeiros acordes da “Marcha Triunfal”! O momento é de suspense e expectativa! De euforia mal contida! 
A porta abre-se após o que parece uma eternidade. Dela sai, célere, o Dr. Simão, porta-voz do partido. A música recrudesce de intensidade! Contudo, rapidamente se fecha de novo! Qualquer coisa, pelos vistos, corre mal! O ar comprometido do Dr. Simão não escapa a ninguém! Depois de um breve olhar pelos circunstantes, dirige-se taciturno ao “Sr. Presidente”. 
O dialogo é curto e tenso! Incapaz de se conter; o “Sr. Presidente” solta uma imprecação! Os que o rodeiam percebem agora (mais pela forma, que pelo conteúdo) a razão da sua irritação: o Secretário Geral, atrasado no circuito da campanha, resolveu, à ultima da hora, não passar por Vila das Naves! 
Intempestivamente o “Sr. Presidente” regressa ao edifício da Câmara. Acessoria e vereação seguem-no diligentemente, entre perplexos e solidários com o desagrado presidencial! 
E, enquanto a mente fervilhante do “Sr. Presidente”, pondera já vantagens e desvantagens de uma transferência partidária, os acordes da “Marcha Triunfal”, que lentamente se vão diluindo, despertam, agora, uma estranha sensação de ridículo!

O Suplente



O aproximar do dia das eleições vem electrizando a postura, normalmente formal e discreta, do Simplício.
Após uma marcação cerrada aos líderes regionais e uma tentativa, de alguma forma bem sucedida, de se tornar indispensável, conseguiu o seu desiderato principal: um lugar nas listas do Partido, condição prévia, que se espera premonitória, de um futuro auspicioso.
Corresponder o dito a um dos últimos lugares suplentes poderia até ter desanimado alguns menos entusiastas ou, quem sabe, frustado alguns mais impulsivos. Contudo, não o Simplício!
Apoiando-se na sua humilde (mas badalada) origem rural, este sabe, como diz o povo que tantas vezes evoca, que as “cadelas apressadas parem os cães cegos”.
E cego é aquilo que ele não é! Ele sabe que as próximas eleições podem abrir um mundo de oportunidades. Ou, se quisermos, de forma mais rigorosa, um novo mundo de oportunidades.
A lista constitui uma oportunidade de notoriedade e a notoriedade desde que enquadrada num círculo de conhecimentos adequados pode fazer ganhar o céu a quem recentemente chegou ao mundo real, recém-formado, sem experiência profissional e sem grande apetência para a travessia do deserto que esta exigiria.
Até porque, só próximo do poder podemos influenciar o dito a tomar as decisões mais adequadas e, desta forma, contribuir realmente para desenvolver este país, melhorar a qualidade de vida e servir, assim, o povo que somos.
Não é, com certeza, provocando agitação nas empresas e nas ruas, reivindicando de forma ineficaz condições descabidas ou já previstas nos programas de governo, que o país consegue recuperar as décadas de atraso que leva dos seus parceiros europeus.
O Simplício sente, assim, não só que é seu inequívoco direito como, inclusive, seu dever, partilhar das ingratas responsabilidades que o poder acarreta. Contra tudo e contra todos, inclusive a incompreensão daqueles que tudo resumem a “jobs” e a “boys”, como se o mundo fosse feito apenas de oportunismos e interesses mesquinhos.
Como lhe seria fácil manter-se cómoda e passivamente, “assistindo de poltrona” ao mergulhar do país cada vez mais fundo, no caos para o qual outros o arrastaram.
Mas o Símplício sente que tem qualquer coisa a dizer sobre o assunto. Que o país precisa do Partido e o Partido precisa dele! Da sua determinação, clarividência, honestidade e inexcedível sentido de justiça!
Só de pensar nisso uma irritação envolve-o como num frenesim. Perpassa-lhe a pele, eriça-lhe os cabelos, sobe-lhe pela garganta, num amplexo asfixiante que o oprime e emociona.
É que se existem coisas a que ele é particularmente sensível, é às injustiças. Foi esta, aliás, uma das principais razões porque aderiu ao Partido.
“Justiça e modernidade” será até a frase chave que escolherá quando, alguma vez, a estratégia de campanha passar por uma bem mais destacada disponibilidade eleitoral da sua pessoa.
“Justiça e modernidade”! É disto que o país precisa! Valores pragmáticos, alheios a utopias, assentes na competência, capazes de fazer deste país algo mais que o “carro vassoura” de um percurso europeu a várias velocidades.
O resto é conversa para eleitor ouvir. Conversa fiada, de quem prefere falar a agir. De ingratos e mal intencionados. De derrotados e perdedores.
E perdedor, foi aquilo que, à cabeceira do leito paterno, acompanhando os últimos suspiros, o Simplício prometeu veementemente que nunca seria!
É um facto que lá no fundo, bem lá no fundo, a sua consciência briga ainda com pressupostos residuais dos seus tempos de militância estudantil em que os valores e ideias apresentavam, até, contornos esquerdistas.
Épico, esforçado e digno dos maiores encómios tem sido, na verdade, o seu esforço para ultrapassar definitivamente tais empecilhos filosóficos. É que a percepção da realidade que o envolve parece apostada em infernizar-lhe o juízo quanto à racionalidade ideológica das suas opções actuais.
Mas não é em vão que o Simplício é tido como pragmático. Talvez se não possa dizer que nunca se engana e raramente tem dúvidas. Mas é moço de convicções firmes, dúvidas escassas e decisões empenhadas.
Portanto, se há coisas que se têm que fazer, “o que tem que ser tem muita força”, remata, peremptoriamente, de si para si.
E se, na verdade, a sua percepção das coisas, aqui e ali, apresenta ainda algumas dificuldades em enquadrar-se harmoniosamente na realidade vigente, paciência,….  problema da realidade!

A Era das Homenagens



Assiste-se hoje a uma proliferação de cerimónias de homenagem, e de homenagens de cerimónia, às figuras públicas (culturais, políticas, artísticas, autárquicas ou desportivas) da nossa sociedade contemporânea, por razões ocultas, dita civil.
Não há gato-pingado que não seja alvo de mais ou menos grandiosa e, sempre solene, consagração pública, pelo seu inigualável trabalho, inexcedível dedicação e espírito de sacrifício, com prejuízo, já se sabe, dos seus interesses pessoais, profissionais e familiares.
Não há instituição que se preze, seja Rancho Folclórico, Clube Desportivo, Associação Recreativa, Cultural ou Patrimonial, Sociedade artística ou Filarmónica, Autarquia, Grupo Humanitário ou de Excursionismo, Comissão de Festas ou de Beneficência, que não desencadeie o seu processo de homenagens em série, dirigidas aos seus dirigentes presentes e passados, colaboradores, beneméritos, sócios mais antigos, fundadores, filhos (ou enteados) ilustres, amigos e ... conhecidos!
Ora as homenagens são assim como os milagres: a sua multiplicação exagerada vulgariza-as e desvaloriza-as. Progressivamente vai-as tornando  banais e insignificantes!
Mas enquanto tal fator não é determinante, as mesmas vão crescendo como os cogumelos. E se algumas são gostosas outras não deixam, à semelhança dos ditos, de serem incómodas e perigosas. Há-as até, de alguma forma, venenosas!
 Mas mais ou menos gostosas, mais ou menos sinceras, o que elas são principalmente é... numerosas! São as associações que homenageiam em pacote as dezenas de sócios fundadores.
São as autarquias que homenageiam de enxurrada toas as pessoas vivas, mortas ou moribundas que nelas desempenham/desempenharam funções. 
São, finalmente, as consagrações intensivas de cidadãos mais ou menos ilustres que, dizem as más línguas, estão começando a provocar escassez de homenageáveis adequados.  Diz-se!
Por isso, amigo, vá-se preparando! Garanta já a aquisição ou o simples aluguer da fatiota! Casaco de bom corte, calças a condizer, camisa de marca e gravata apropriada. Os sapatos poderão ser os mesmos, desde que devidamente engraxados e devidamente ocultos por detrás da mesa da presidência.
 É que atendendo ao ritmo que as coisas levam e se excluirmos os cidadãos por natureza não homenageáveis, o seu tempo aproxima-se vertiginosamente.
Se não é já criança ou adolescente (nesse caso terá de esperar mais algum tempo), nem velho caduco (cuja vez com certeza, já terá passado), se goza dos seus direitos civis e políticos, se não é marginal assumido ou considerado como tal pela vizinhança, se já foi, pelo menos, 3º Vogal da Secção de Campismo de uma qualquer Sociedade Recreativa ou organismo afim, apreste-se que a sua vez está a chegar!
A sua não,... a nossa!

O Discurso



O vereador Felisberto não estava à espera disto. Vindo em representação do Município ao aniversário da Sociedade Recreativa e Cultural Reguenguense, era suposto tudo não passar de mais uma oportunidade de salutar convivência gastronómica em volta de uma substancial sopa de pedra e respectivas febras assadas, devidamente regadas, é claro, com “uma pomada de estalo” e concluídas com o já tradicional “digestivo caseiro” de comprovada qualidade.
Contudo o “Chico Faneco”, presidente da Associação (com pretensões locais de carreira política), não pretende deixar passar em claro a presença do vereador, sem que o mesmo profira algumas palavras de elogio à instituição, que aquele, naturalmente, pretende capitalizar em seu proveito.
Um pouco zonzo com os treze graus do “tintol” consumido, o vereador ergue-se lentamente. 
Curiosamente a sala de baile onde se realiza a refeição parece agora um pouco instável. O chão apresenta alguma fluidez, parecendo tremer um pouco ao sabor dos aplausos que aqui e ali emergem, numa assistência, contudo, maioritariamente indiferente. 
Disfarçadamente agarra-se à mesa embora, curiosamente, também ela não pareça muito firme.
O levantar desencadeia um proliferar de “shius”, pronunciados entredentes, mas cuja eficácia esbarra na disposição eufórica e incontrolável dos comensais. Eis quando um berro colossal do “Faneco”, seguido dum breve mas firme “puxão de orelhas” produzido com cara de poucos amigos, corta cerce a maioria das conversas e consegue alguns momentos de silêncio.
O vereador tosse circunspecto provocando assim, de alguma maneira, um adensar das coagidas expectativas. Lentamente e algo contrariada, a sala aquieta-se.
Entretanto o autarca passa mentalmente em revista o que sabe e não sabe sobre a instituição. A inquietação percorre-o quando se apercebe que não sabe nada de nada exceptuando, é claro, o nome e os anos de existência que da parede do fundo ressaltam brilhantes em letras enormes e fluorescentes.
Reage contudo rapidamente. Não é por acaso que ele, o filho do “Tonho Ferreiro” da Várzea Longa chegou onde chegou. Aliás, desde que se levantou, sente-se até mais leve e mais liberto. Capaz, na verdade, de proferir um discurso inesquecível!
“Caros amigos, concidadãos reguenguenses, estou aqui para lhes trazer as felicitações do Senhor Presidente da Câmara e informá-los que a autarquia olha com particular atenção e desvelo a acção desenvolvida por esta casa nos seus (olha de soslaio para a inscrição cintilante) 45 anos de uma grandiosa e profícua existência”.
Respira fundo, e pisca os olhos tentando clarear uma visão teimosamente pouco nítida: 
“Porque todos não somos demais para fazer deste concelho, um lugar onde apeteça viver. E para isso contamos como todos os reguenguenses, particularmente com aqueles organizados em torno desta prestigiada associação”.
Pigarreia, aclarando a garganta, enquanto nos olhares algo carrancudos da assistência perpassa uma expressão de relutante paciência: 
”Deste modo a instituição que eu represento faz questão de afirmar de forma clara e inequívoca, a sua solidariedade e reconhecimento para com os esforços aqui desenvolvidos na persecução e promoção da cultura e do bem público.”
Aqui faz uma pausa, aproveitando para emudecer a garganta com mais um gole de “alvarinho” e, com um gesto displicentemente teatral, declina extemporâneos aplausos de alguns mais impacientes; 
“Cultura e bem público, promovidos com sacrifício pessoal e familiar por sócios e dirigentes (e aqui inclina a cabeça para o “Faneco” que, ufano mas reservado, agradece formalmente) da Sociedade Musical Regenguense!”
Um burburinho de escandaloso desagrado percorre a sala à referência nominal aos detestados rivais da “f´larmónica”, enquanto alguns mais exaltados, afoitos ou vulneráveis ao efeito da “pinga”, gritam ostensivamente a necessária rectificação; “Recreativa e Cultural!”
Mas a gafe não inibe o Felisberto cuja disposição medeia agora entre a euforia da inconsciência e a percepção vaga de uma realidade cada vez mais distante.
“Ou isso,...” concede com indiferença!
O ambiente está agora mais enevoado. Na disposição ofendida da assistência que vê, aliás, eternizar-se o reinício do festim mas, igualmente, na visão cada vez mais toldada do orador. As suas pernas apresentam já uma curiosa tremedeira. A cadeira surge como uma desejada tábua de salvação!
Teatralmente levanta os braços ensaiando o clímax final: 
”Estais assim todos de parabéns: por aquilo que fizestes no passado e fareis no futuro!”
E numa voz que cada vez se aproxima mais das tonalidades gritantes termina de dedo em riste em jeito de apoteose: “Porque vós sois o passado e o futuro: o ying e o yang do associativismo, o alfa e o ómega do voluntariado!”
E, desequilibrado pelo balanço final da oratória, mal tem tempo de cair pesadamente sobre a cadeira que, contudo, reagindo à sobrecarga de esforço, se esfrangalha literalmente provocando uma aparatosa queda.
Uma trovoada de alegres aplausos abate-se, finalmente, sobre a sala!