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Espaço de comunicação que se espera interactivo, este é um instrumento que permite estar próximo de amigos,presentes e futuros, cujas contingências da vida tornam distantes mas nem por isso menos merecedores de estimas e afectos.
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quinta-feira, 14 de setembro de 2017
Taumatúrgico e casamenteiro : Santo António e as conceções solsticiais
De acordo com a conceção mítica tradicional, o Mundo, dotado que é de uma natureza entrópica inexorável, corrompe-se periodicamente e morre. Carecendo, portanto, de ser recriado.
Dando assim corpo, ao que chamamos o tempo cíclico (anterior ao tempo histórico que hoje vivemos) que todos os anos se acredita esgotar e diluir no limbo primevo. Que todos os anos nasce de novo; regenerado e recriado.
Por isso, os fins dos anos foram, durante milénios, vistos como “fins dos mundos” e estes, por seu turno, encarados como espaços temporais de morte e recriação.
Para isso, os deuses criadores se tornarão, com o tempo, elementos sacrificiais e, o seu sacrifício, condição necessária de recriação e salvação.
Por isso, tradições populares exóticas e subversivas (algumas, ainda existentes), celebravam os “fins dos anos” enquanto representações simbólicas dos “anos velhos” que passavam. Envergando máscaras que representavam o velho e decadente e/ou sendo portadoras de variados símbolos de regeneração. Ou criando lutas rituais entre personagens solsticiais simbolizando “o velho” e “o novo”, o corrompido e o rejuvenescido, o inverno e o verão, o pecaminoso e o puro.
Na verdade, muitas das nossas tradições assentam nesta raiz ancestral, frequentemente pré-cristã, que celebra ciclicamente os fins dos diferentes períodos anuais, gerando festas diversas, caraterizadas pela rotura e pelo excesso.
Em que predominam os tais símbolos de transição e transformação: máscaras, transvestismo, inversões sociais, subversões, fertilidades regenerações.
Que “os tempos entre os tempos” , funcionalmente, induzem.
Por isso, os momentos solsticiais são, ainda hoje, ocasiões em que se celebra o ciclo de vida.
A nova vida que irrompe da morte; no solstício de inverno.
O apogeu da vida, no solstício de verão: clímax, que é, da dominação solar e da fertilidade imanente da natureza.
É assim, este último, tempo da celebração festiva da vitalidade que a primavera induz: de uma natureza, afinal, grávida de vida.
Por isso os santos, aí comemorados, se impregnam do poder fecundante e criador, na altura celebrado.
E se no Solstício de Inverno será colocada a celebração do nascimento de Cristo (enquanto cristianização do natal de Mitra), São João que, segundo o calendário solsticial nasce seis meses antes (condição condizente com o modelo arcano solsticial), vai ser, dir-se-á naturalmente, o percursor, o anunciador: aquele que vem “preparar o caminho do Senhor”.
Aliás, na construção do mito cristão, a figura de São João Baptista, embebe-se de um simbolismo solar indubitável. Nasce segundo o ciclo solsticial, atinge a apoteose do brilho no auge da pregação, assinala com o batismo o seu sucessor a quem passa o testemunho do poder e se assume como servidor (o tal de “quem nem é merecedor de desatar as correias das sandálias”), correspondendo, portanto, à entronização de um novo rei. Finalmente, findo o seu tempo, degenera e morre, para permitir a anunciada ascensão da nova divindade, do “novo sol”; Jesus Cristo!
Dando assim origem, à prodigiosa “noite de são João”.
Em que a natureza é sagrada e se reveste de prodigiosas qualidades. Sejam as águas, as plantas ou árvores, o orvalho ou os rios, o fogo ou o fumo, as flores ou as searas.
Em que, em tempos idos, decorriam flamejantes cortejos luminosos, se dançava e cantava nos bosques em redor de árvores ou, com o mesmo propósito, se transportavam, as mesmas, para os largos das aldeias.
Em que se realizavam orgias sagradas. Em que os banhos eram “santos”. O orvalho, “benfazejo”. O fogo, purificante.
E se defumavam casas, gados e pessoas.
Em que se queimava a alcachofra e a “erva pinheira”. Acto de adivinhação e propiciação que, este tempo, permitia acontecer.
Em que as pessoas se mascaravam e trasvestiam, se invertiam situações sociais, económicas e de género. Se roubavam flores, carros de bois e cancelas. Se desencadeavam pantominas subversivas como, a ainda hoje sobrevivente, “bugiada” do Sobrado, no concelho de Valongo.
Daí as particularidades que São João adquire e o tornam santo casamenteiro. Das quais Santo António e São Pedro irão, igualmente, beber.
Mas, este último, relacionado com uma iconografia sénior, apresenta traços iconológicos que, em termos populares, o afastam, da matriz sentimental.
São Pedro por ser velhinho
Deve ter muito juízo
Por isso Deus lhe entregou
A chave do Paraíso!
Afinal, os santos casamenteiros são sempre, iconograficamente, jovens: susceptíveis de uma mais fácil identificação com a função sentimental que desempenham.
Serão, assim, São João e Santo António que, essencialmente, irão partilhar da licenciosidade namoradeira que é própria de um santo casamenteiro que se preza. Daí as similaridades na poesia popular.
Percebe-se que os dois santos, se revelam como expressões semelhantes de uma mesma hierofania. Ambos são casamenteiros, brejeiros e mulherengos, patronos dos gados domésticos e, estão ligados, direta ou indiretamente, à problemática, sempre latente (e neste caso particularmente abrangente), das curas milagrosas.
Para lá da invocação geral que muitos “ensalmos” populares comprovam um pouco por todo o país, os dois possuem áreas de intervenção taumatúrgicas, especialmente alargadas e diversificadas.
Pode assim dizer-se, que a popularidade de António, o “santo menino”, resulta tanto da referida conexão astral como, igualmente, de uma multifacetada taumaturgia que, numa hagiologia especialmente rica e a sua natureza de santo português, cultualmente promovido pela capital, vai consolidando.
Pode, aliás, dizer-se, que todos os santos casamenteiros são populares.
Apresentando-os como mulherengos e bons garfos, como qualquer homem da nossa sociedade tradicional, os cancioneiros locais refletem na sua caracterização, laivos de companheirismo e, algumas vezes até, irónica e insólita camaradagem!
Onde mora Santo António
Que o quero para vizinho
Mora para lá da ponte
Para cá do ribeirinho.
Camaradagem que facilmente resvala para atitudes de relação face-a-face que a “imagem” permite, assim ocasionando (nalguns casos) confrontações várias, algumas revelando, até, ostensivas manifestações de desagrado.
Afinal, o contrato oral com o santo (mesmo que intimista) à semelhança daqueles que eram comuns nos negócios desenvolvidos nas sociedades tradicionais, acarretam uma obrigação contratual recíproca. Assumida pelo crente no ato de prometer e pelo santo, implicitamente dir-se-á, pela sua natureza de protetor daquela área e, afinal, por não ter rejeitado a mesma.
No entanto, se o santo não concede a graça ou a mesma demora, a insatisfação individual ou coletiva poder-se-á tornar particularmente visível.
E se, supostamente concedida, evoluções posteriores vêm a revelar recaídas diversas, então a irritação pode eclodir e levar a ações de desagravo ou retaliação desenvolvidas, ostensivamente, sobre as suas “imagens”.
E, nesse aspeto, Santo António pela sua familiaridade, muitas vezes comunitária, adquire papel saliente.
Vieira Natividade, por exemplo, relata, em Alcobaça, um insólito episódio em que Santo António é até, literalmente, esbofeteado por uma rapariga claramente frustrada no seu desígnio amoroso.
Outros, bem mais comuns, emergem de um ideário particularmente pitoresco em que como castigo ou mera coação se costumam (atente-se) mergulhar as imagens dos santos em água.
Leite de Vasconcelos, por exemplo, relata uma situação observada, no Porto, em que uma família tinha colocado uma imagem de Santo António num poço com a cabeça para baixo, por não ter atendido uma prece. Também em Alcobaça se fazia o mesmo, por razões semelhantes, com a “imagem”, atrás referida, do mesmo Santo António.
Ou, ainda, em Serpa em que as raparigas, que tardavam em casar, costumavam suspender o santo por uma corda (igualmente de cabeça para baixo) mergulhando-o num poço, até que se efetuasse o casamento.
Afinal, as divindades, sejam elas de que natureza forem (empíricas ou refletivas) mais não são, poder-se-á dizer, que arquétipos de uma sociedade transfigurada e entendida simbolicamente.
Mas não só os santos ditos populares (de impregnação solsticial) possuem atributos sentimentais e fecundantes.
A exemplo de São Valentim, cuja hagiologia pouco sustentável o localiza no século III D.C, e o apresenta como um sacerdote cristão que, “por acreditar muito no Amor e valorizar o casamento e a família”, teria sido morto pelo imperador Cláudio II, que teria proibido os casamentos.
Se atentarmos a que este é o período em que os teólogos cristãos desaconselham, eles sim, o casamento e a as relações carnais, desvalorizam a mulher e chegam até a defender a santificação das virgens e a proibição dos casamentos a todos os cristãos (de que o celibato atual é resultado de um compromisso possível) podemos aferir da sustentalidade de tal ideário.
Aliás, São Valentim, apenas a partir de 1840, na Inglaterra vitoriana (quando as formas de sedução adquirem contornos de sofisticação mundana) adquiriu importância que, hoje, a sociedade de consumo, tornou numa mais oportunidade de consumo.
Diferente é São Gonçalo; afinal um reconhecido especialista na matéria.
Santo que incorpora intensos atributos operativos de antigas e ignotas divindades fecundantes, delas subsiste o conjunto escultório denominado “o diabo e a diaba” (representando antigas potências sexuais) aos quais os devotos de São Gonçalo, ancestralmente, solicitavam tais graças.
Afinal, destas entidades, herdou o santo a capacidade de “casar velhas, feias e prostitutas”: situações particularmente difíceis que requerem intensas valências fecundantes.
Delas, parece ter, ainda, herdado os famosos bolos fálicos que, hoje, inícios do século XXI, continuam a ser vendidos e até expostos face à liberalidade atual de tempos e modos.
Mas o irreverente lascivo é aqui, ainda, mais diversificado. Rapariga encalhada que vá às festas de São Gonçalo e deseje casar, deve puxar, três vezes, o cinturão da “imagem” do santo. Caso não o faça, corre o risco de nunca casar! Indo, assim, engrossar o clube das tias crónicas e solteironas.
Apesar de beato (cujo culto, afinal, só foi reconhecido na Diocese de Braga e entre os dominicanos) São Gonçalo é particularmente popular no Minho mas, igualmente, em cidades onde existiam mosteiros ou igrejas dominicanas.
E embora não tendo, nunca, uma intensa e homogénea penetração nacional, o mesmo irradiou, depois, para outras localidades principalmente do norte do país.
Chegou, ainda ao Brasil onde adquiriu novas funcionalidades e ainda hoje permanece como um dos mais importantes cultos populares em grande parte dos estados brasileiros. É aí chamado de “santo de viola” e possuidor de uma iconografia que evoluiu, frequentemente, para contornos literalmente profanos.
Preservando-se aí, o assim chamado, “baile de São Gonçalo” ou “dança de São Gonçalo”, onde os devotos, em espaços particulares e frente a um improvisado “altar do santo” vão, de forma ritual (prescrita e orientada) cantar e “dançar para o santo” pagando assim, hoje como ontem, as respetivas promessas.
Poder-se-á dizer, então, que, na Europa, os “santos casamenteiros” resultam de duas e diferenciadas causalidades.
Ou participam das valências fertilizantes de uma temporalidade solsticial estival (como São João ou Santo António e, apesar de tudo, São Pedro) ou resultam da substituição sincrética de um culto local fertilizante/fecundante; como São Gonçalo.
Ou ainda, se quisermos, de uma interpretação hagiológica muito peculiar; tornada referencial sedutor de classes superiores; como São Valentim.
Em termos históricos (ou pelo menos historicizados) Santo António de Lisboa (onde terá nascido a 15 de Agosto de 1191/5), também conhecido como Santo António de Pádua, (onde morreu a 13 de junho de 1231), de sobrenome incerto mas batizado como Fernando, foi um Doutor da Igreja que viveu na viragem dos séculos XII e XIII.
Primeiramente foi frade agostinho no Convento de São Vicente de Fora, em Lisboa. Tornou-se franciscano em 1220 e, no ano seguinte, fez parte do Capítulo Geral da Ordem em Assis, a convite do próprio Francisco de Assis: que o convidou, também, a pregar contra os albigenses. Foi transferido depois para Bolonha e de seguida para Pádua, onde faleceu: para uns aos trinta e seis, para outros aos quarenta anos.
A sua fama de santidade levou-o a ser beatificado pela Igreja Católica pouco depois de morrer, distinguindo-se como teólogo, místico, asceta e sobretudo como notável orador e grande taumaturgo .
Situação que a lenda releva no conhecido “sermão de Santo António aos peixes”.
António é, de facto, tido como um dos intelectuais mais notáveis de Portugal do período pré-universitário. Possuía uma sólida cultura, documentada pela coletânea de sermões escritos que deixou, onde fica evidente que estava familiarizado tanto com a literatura religiosa como com diversos aspetos das ciências profanas.
Segundo a lenda, que a hagiologia perpetuou, nasceu e viveu em Lisboa e lá ajudou a concretização de muitos casamentos felizes e orientou muitos homens e mulheres para encontrarem o cônjuge que iriam amar até o fim da vida.
Seus auxílios e intercessões aos namorados e noivos teriam, então, despertado uma grande devoção popular entre os portugueses. Devoção que os seus milagres, os seus escritos e a sua reconhecida intercessão sentimental, há séculos, alimentam.
Protetor nas viagens, libertador de presos, achador das “coisas perdidas”, dissipador de trovoadas, Santo Antônio é especialmente conhecido como padroeiro dos casais e dos namorados, dos doentes e das mulheres grávidas e dos pobres.
Tais abrangências milagrosas (principalmente as sedutoras), envolvem-no em peculiares quadras amorosas , donde participam oferendas de manjericos, fontes, “bilhas partidas” e seduções de moçoilas numa particularmente fértil hagiologia popular.
Mais frequentes enquanto loas joaninas, surgem também, frequentemente, na poética popular relativa a Santo António.
Santo António, n’esta fonte
De águas claras e amigas
Quantas vezes consertastes
As bilhas às raparigas?
No Brasil, entre muitas outras funções, Santo António, especializou-se em fazer as pazes entre os casais desavindos.
Parafraseando uma ação ritual, também comum em Portugal (aqui, contudo, mais como conciliação que reconciliação), para isso, se usa um cravo e uma rosa. Os talos devem ser amarrados juntos com uma fita verde, na qual serão dados treze nós. Durante o procedimento, o devoto deve acreditar, naturalmente, que Santo António vai uni-los outra vez.
Hoje as festas de Santo António em Lisboa (e também por razões miméticas noutras zonas do país), são especialmente conhecidas pelas, já tradicionais, “marchas populares”.
Há pouco tempo surgiam, ainda, as fogueiras, acesas nos largos ou ruas dos bairros alfacinhas, bem como das aldeias e vilas deste país, enfeitados a preceito com luminárias e papéis, ramagens e flores, enquanto estralejavam as bombas e assobiavam as “bichas de rabiar”, entre gritos de alegria e interjeições de admiração de crianças e adultos .
E o lúdico, mágico e purificador, emergia então, pujante, quando a chama da fogueira se utilizava para “queimar as alcachofras” ou quando, o fumo, era utilizado para “defumar” pessoas e animais .
Saltar à fogueira constitui, na verdade, um ato mágico de fertilização; em que o calor e a luz, expressões operativas do poder solar, vão energizar potências fecundantes em futuras ligações sentimentais.
Do fundo dos tempos chegavam-nos ainda costumes (que aliavam as virtudes exorcísticas da vegetação ao poder fecundante das fogueiras) de espetar tições nas leiras dos pomares e hortas, de forma a impregná-las de poder fecundante e potenciar assim, ainda mais, a magnanimidade da Terra-mãe.
Pois, saúde e fecundidade (condições necessárias de fertilidade) constituíam, como vimos, a dicotomia presente na simbologia flamejante da fogueira solsticial.
Herdeira dos antigos cortejos de fogo; hoje presente nas luminárias (já não flamejantes, mas eletrizantes) dos arcos florais e ornamentais.
Fogueiras celebrando o apogeu do sol (no cimo dos montes ou no centro da aldeias): centros e “umbigos do mundo”, afinal!
Centralidades que o “mastro”, “pinheiro” ou “carvalho de São João” ou o “mai pole” das calendas de Maio (de temporalidade céltica) tão claramente simbolizavam.
Ou encarnavam, um pouco por toda a Europa, em personagens florais ou efigies antropomorfas (verdadeiros espíritos da vegetação) como os “maios-moços”, o “Jorge Verde” da Caríntia e da Rússia ou o “Jack The Green” das Ilhas Britânicas. Que, em Portugal, nos surgem já em Gil Vicente, mais precisamente no Auto da Festa:
San Juan Verde, passó por aqui
Quan garradiço, o vi venir
Efigies antropomorfas que persistiram até recentemente nos bonecos queimados na fogueira ou nos pinheiros e “mastros” associados. Imolados pelo fogo num contexto mítico/ritual de morte/renascimento.
Ou até nos “tronos de santo António”; criativas consagrações rituais de uma devoção popular . Espécie de relicário familiar trazido para um espaço público; de forma a expressar publicamente a respetiva devoção e afirmando a religiosidade comunitária individual e familiar.
Que, como todas as iniciativas populares tradicionais (nomeadamente de natureza sagrada como o “pão por Deus” ou o “tostãozinho p´rá maia” ou das solicitações de dádivas nas “cantigas dos reis”, do natal ou do ano novo) também se vieram a traduzir no “tostãozinho p`ró Santo António”, sendo as crianças os sujeitos da ação como, com certeza, formaram cada vez mais os elementos motivadores e sustentadores da mesma.
E finalmente pelos “arraiais” que, em Lisboa, assentavam e ainda assentam nas organizações de vizinhos que os pátios consubstanciam (hoje, naturalmente, turistificados), onde se come, canta e dança e se desenvolvem atitudes licenciosas e sentimentais.
E, sempre, a presença da natureza!
No caráter esconjuratório dos “alhos porros”, preservados até recentemente no Porto e hoje substituídos pelos simpáticos martelinhos.
Nas quadras populares propiciatórias e nos manjericos (plantas aromáticas sensíveis e cheirosas, que têm de ser regadas para crescer e florescer; como o amor afinal) e que se encontram, neste tempo, especialmente verdejantes.
Mas cujo cheiro só resulta do toque pessoal e íntimo e, deste modo, se não difunde, facilmente, pelos outros.
E a relação popular como o santo é de tal maneira próxima que, antigamente em Lisboa, no seu dia, se entregavam formalmente a Santo António, oficiosas petições em que se lhe pedia toda a sorte de coisas, mesmo as mais ilícitas, e que {atente-se} eram escritas em papel selado, por “escrivães públicos, instalados nas vizinhanças das igrejas”.
E se podemos dizer que “todos falamos com Deus e com os santos, mas que, o prodígio, que faz o milagre, está em Deus falar connosco”, a relação popular com Santo António, levava até, algumas vezes, por paradoxal que seja, a uma resposta escrita e endereçada, assinada, nem mais nem menos, que pelo punho do santo!
Exemplo mais acabado de tentativa de apropriação institucional das qualidades taumatúrgicas de santos, por definição populares, será difícil encontrar.
A arte de curar e o entendimento popular do mal
Poder-se-á dizer que na tradição popular portuguesa o mal surge, normalmente, como decorrente não de um qualquer mau funcionamento orgânico, mas de algo que existe para lá (e independentemente) deste e da sua ação manifesta.
Doenças são atribuídas às mais diversas entidades mais ou menos maléficas. Azares, transcendentalmente interpretados.
Acidentes têm quase sempre, por detrás, sobrenaturais e, quantas vezes tenebrosas, causalidades.
Naturalmente, diversas razões são vistas como responsáveis (em termos imediatos), pelas diversas moléstias que afetam os homens e os infernizam.
Tipologias que vão desde a “possessão” por mortos, “espíritos” ou “demónios” a malefícios decorrentes de “pragas”, ”enguiços” e “sortilégios”, passando por “animais peçonhentos” que percorrem o corpo”, pelos misteriosos e ignotos “ares maus” que impregnam de pestilência a saúde individual ou, mesmo por supostas anomalias anatómicas; empíricas e analógicas.
Por malefícios individualizados e suscetíveis de serem corporizados em ignotas entidades, mesmo que exteriores a uma assídua ambivalência.
Ou, ainda, por outros malefícios; decorrentes da inveja. Ou por castigos divinos concomitantes, ou não, com anteriores causalidades.
Diversificadas são, deste modo, as causas associadas às disfunções corporais ou psíquicas, tal como a mentalidade popular as entende. Tão diversificadas como as soluções terapêuticas existentes e consideradas apropriadas.
Afinal, na tradição popular, as alternativas de cura nunca são de mais.
Pelo contrário; o crente não considera incoerente, perante uma doença (para lá da obrigatória consulta ao médico), fazer uma promessa ao santo da sua particular devoção, desenvolver um ato de cura mágico ou exorcístico ou recorrer a uma qualquer “curandeira”/”benzedeira” de conhecida, ou não, natureza e proveniência.
E, hoje, num mercado terapêutico mais vasto, recorrer, ainda, a outras opções.
Seja como for, pode dizer-se que as curas têm uma lógica própria. Não experimental, mas experimentada. Não assentando na razão científica, mas na analogia homeopática, holística e transcendental. Entendendo o Cosmos como um repositório de energias que fluem e refluem em ignotos campos e dimensões.
E cujo conhecimento (hermético, em maior ou menor grau), permite instrumentalizá-las em peculiares ações mágicas mais ou menos ritualizadas. Mesmo aquelas que, pela sua singularidade, surgem, à primeira vista, como macarrónicas e inexplicáveis.
Inexplicáveis para nós, já se vê! Indivíduos do século XXI, portadores de uma visão do mundo que, pela omnipresença técnica que nos envolve, tendemos a considerar única.
Esquecendo-nos que a mesma vigora, apenas, há duas ou três centenas de anos; segundos, mesmo pela cronologia do mais imediatista relógio cósmico.
Vistos em termos de diagnóstico, os males são os sintomas (ou, melhor dizendo as expressões visíveis dos mesmos) bem como as respetivas manifestações físicas e fisiológicas igualmente visíveis; quantas vezes secundárias e complementares.
Mais que atacar causas tenta-se, assim, colmatar efeitos.
Não obstante existem casos em que a cura tenta atingir o elemento causador (ou, pelo menos, o suposto causador) da respetiva enfermidade.
Por exemplo, ao “talhar-se o cobrão” ou “os sapinhos” (embora o episódio ritual decorra no corpo enfermo) o objetivo é matar, através de uma ação mágica, o “animal peçonhento” causador.
Por isso se nomeiam os diferentes cortes aplicados do rabo à cabeça e se manifesta o desejo ritual de que o mesmo se “quede” (pare), “morra” ou “mirre”: entenda-se, sucumba por degeneração. Por isso, no Barroso, onde se considera que “a mordedura do licranço não tem cura nem descanso”, a única solução, acredita-se, está em matar o dito.
Por isso, em muitas regiões do país, as dores das picadas de silvas ou piteiras, se tiram cortando, cerce, o pico causador.
Portanto, se não se pretende, muitas vezes, atingir a causa efetiva do mal (desconhecida, afinal), pretende-se, contudo, atingir a causa hipotética: na verdade, aquela que, na perspetiva terapêutica popular, corresponde a tal.
Neste sentido, muitas das terapias tradicionais envolvem processos metodológicos e de conteúdo, que assentam a sua eficácia em supostas relações mágicas e numa lógica de equivalência entre representação e representado.
No contexto apelativo, os santos cristãos, fruto de naturais funcionalidades de conjuntura, constituem as mais vulgares das entidades solicitadas. Masculinos ou femininos (na sequência da absorção sincrética de divindades pré-cristãs das quais herdaram valências e competências), os mesmos tornar-se-ão, com o tempo, advogados privilegiados das mais particulares doenças e desfavores.
Potenciando tudo isto, surgem otimizações ou degenerações propiciatórias, próprias de temporalidades, terminologias e configurações, cujo conhecimento os oficiantes transmitem em arcanas e singulares iniciações.
De forma especialmente sintética e sem pretensões exacerbadas de rigor sistematológico debrucemo-nos, então, sobre nove paradigmas concetuais caraterizadores das mais usuais terapias populares ritualizadas, encontradas no nosso país.
Tais como elas, afinal, nos chegaram.
1 - A força das palavras
As fórmulas oratórias constituem o cerne da maioria dos atos de cura. Das palavras proferidas emerge um intrínseco potencial terapêutico cuja eficácia se encontra numa proporção direta do rigor das mesmas e da salvaguarda da sua incorrupção.
Porque são palavras sagradas, vistas como remontando a tempos ancestrais. Ao início dos tempos, afinal, bebendo, assim, do poder e prestígio dos primórdios.
Aliás, na medicina popular, o reforço do potencial curativo serve-se, muitas vezes, de uma peculiar estratégia. Começa-se por proferir uma asserção evidente do tipo: “Jesus é filho de Maria”, “Menino Jesus é verbo”, “Deus é toda a claridade”, etc. Asserção verdadeira e inquestionável, porque sagrada.
Algumas, remetendo para acontecimentos bíblicos ou não apresentam-se, até, como explícitas analogias operativas: “Assim como Nossa Senhora sarou da sua paridura, assim tu sares da tua abertura”.
Aproveita-se, assim, a semelhança assertiva para potenciar a ação respetiva.
Seja como for, a força que emana das palavras proferidas é incontestável. A sua eficácia, se não maculada por erro na sua proclamação ritual ou contaminada por ruido corruptor, surge como inquestionável.
Recorre-se, portanto, à repetição arquétipa dos males ou das curas a efetuar, enquanto ação mágica abrangente e operativa. Nomear as curas, corresponde a criá-las; a gerá-las a partir do indiferenciado primevo.
Das palavras proferidas emerge, poder-se-á dizer, a realidade concreta nomeada.
2 - O poder da transgressão
Omnipresentes são aqui as situações propiciatórias relacionadas com os tempos de transição anual. Descontinuidades temporais, caracterizadas pela transgressão que a rotura explica. Oriunda de um hiato na ordem estabelecida. Veiculando portentosas energias criadoras que emergem, em última instância, do limbo ou do “Além”.
Que podem ser e são, aproveitadas muitas vezes com intuitos curativos ou regeneradores.
Principalmente na singular sobrevivência de roubos rituais associados a muitas delas.
Roubar telhas, feixes de vides, imagens de santos. De um local específico ou indeterminado. Sagrado ou (hoje) meramente profano. Levado de e/ou para a igreja. Entregue ao santo ou feito contatar com este ou com uma componente iconográfica da respetiva “imagem”.
Sempre, contudo, a presença do elemento de transgressão; mesmo que ritualizado.
Pretende-se assim (em malefícios vistos como particularmente difíceis de erradicar), somar a habitual força do esconjuro, com as energias subversivas emanadas do ato imprecatório e subversivo.
Também a energia libertada por uma ação de grande violência pode ser canalizada como potencial curativo. Por isso a “espada que matou excomungado” ou a simples “corda de enforcado” eram vistos como possuindo especiais virtudes terapêuticas.
3 - A expulsão do mal
Decorrente do conceito tradicional de mal, visto de alguma forma, como uma entidade autónoma e identificável, surgem no imaginário terapêutico popular, diversificadas práticas de extirpação e expulsão do mesmo, que dão corpo à mais prolífera tipologia tradicional de práticas curativas.
Afinal, se o mal pode entrar, também pode sair. E se orifícios corporais como os olhos, boca, ânus, ouvidos, nariz e extremidades como as unhas, são vistos como potenciais locais de entrada, também podem, naturalmente, funcionar como pontos de saída. Assim os mecanismos rituais se revelem adequados e a sua formulação verbal ou gestual, rigorosa e eficaz.
Mas o mal pode ainda ser chupado através da pele: mais precisamente através dos orifícios por onde entrou o veneno de uma víbora ou daqueles provocados pelas sanguessugas ao sugar o sangue inquinado de contusões e hematomas. Ou, ainda, através dos orifícios naturais da pele: para isso utilizando-se, ancestralmente, ventosas ou “pedras de peçonha”: cujas misteriosas adesões ao corpo eram vistas como correspondendo a um prodigioso absorver do mal.
E até o cuspir desempenha, aqui, papel de relevo, tanto entre nós como em muitas outras culturas. Assim como se chupa, absorvendo o mal por osmose ou fazendo-o sair através do sangue, também se usava expeli-lo; projetando-o incorporado em resíduos corporais.
Cuspir, por exemplo, sempre foi visto como um ato de rejeição e expulsão sendo, neste caso, utilizado para expelir o mal do corpo do indivíduo. Aliás cuspir, quando se passa por um inimigo é, desde sempre, forma de repúdio.
Atualmente, aliás, paradigma de ato ofensivo.
O próprio vomitar ou urinar (provocando, nalgumas situações, alívio imediato) tem servido, igualmente, semelhantes propósitos.
4 - Esconjurar
Esconjurar o mal através de uma fórmula mágica oral e gestual para um local tão longínquo e remoto que o mesmo daí não possa voltar é, no entanto, um dos métodos mais usuais.
Contudo, existe sempre a hipótese do lugar estranho e distante para onde o mesmo foi desterrado, não proporcione, afinal, um exílio permanente.
Por isso a mentalidade popular gera criativos degredos que se exprimem, muitas vezes, numa espécie de trabalhos forçados, pela sua natureza, simplesmente irrealizáveis.
Ou então, envia-o para o “Além”. Limpando as feridas com um pano, depois colocado sob a cabeceira de um defunto, ao mesmo tempo que, entredentes, se diz; “fulano, leva-me isto para o outro mundo”.
Ou, ainda, escondê-lo, de onde não possa sair e não o possam encontrar. Deixá-lo cair (enquanto corporizado em bagos de milho ou pedras de sal) durante o caminho ou abandonando-o; como que involuntariamente. “Perdendo-o”, afinal.
Finalmente, ameaçá-lo; afugentando-o de tal maneira, que não lhe passe pela ideia tornar a voltar.
Contudo, como dissemos, esconjurar nem sempre corresponde a expulsar o mal para nenhures. Algumas vezes procura-se, implícita ou explicitamente, um novo hospedeiro; especialmente humano ou animal.
Portanto, o mal deve ser enviado ou para um local que o mesmo não possa abandonar, para um lugar tão separado de nós como o “Além”, tão distante que não pressuponha retorno ou, ainda, para um hospedeiro dispensável ou que, sendo um estranho, não se possua em relação ao mesmo, qualquer sentimento de solidariedade.
5 -A conexão mágica
Frequentemente, as práticas curativas lançam mão de processos rituais que recorrem a diversificadas funcionalidades e operacionalidades mágicas.
Embora constituindo o cerne do processo em presença, não deixam de se interligar com ações apelativas e oratórias, apaziguadoras ou encomendatórias ou recorrer ao uso mais ou menos frequente de substâncias naturais, cuja aplicação (ritualizada ou não) contribui, naturalmente, para a eficácia da terapêutica.
Mas o potencial determinante resulta, acredita-se, da maneira como se desencadeia o respetivo ritual.
Omnipresente, de uma forma ou doutra, é aqui a recorrência ao potencial analógico; simpático dir-se-á. Muitas fórmulas assentam o seu poder curativo nesse referencial, que se pode incrementar através, por exemplo, de expressões como a começada por “Assim como….”,
Também a magia de contágio marca, aqui, lugar de relevo dando, inclusive, origem a algumas das mais bizarras práticas encontradas.
Por exemplo, crianças traquinas (quantas vezes, com certeza, hiperativas) eram antigamente “amansadas” batendo-lhes com a cabeça em certas “imagens de santos” como São Marcos; vistos, pela tradição popular, como amansadores de animais bravos.
Em São Marcos da Serra, “a cada verso seguia-se uma violenta cabeçada, de sorte que a criança, atordoada, ficava mansa”.
6 - Mitos primevos
As situações de repetição (leia-se recriação) dos mitos primordiais, surgem dos fundos dos tempos como sobrevivências arcanas (hoje quase exclusivamente cristianizadas), próprias de um tempo cíclico e acrónico.
A exemplo da “izirpela” ou da conhecida oração a Santa Bárbara contra as trovoadas, rituais são assim repetidos, fazendo, literalmente, acontecer de novo o instante primordial. O instante em que pela primeira vez se processou determinada cura, se exorcizou determinado mal. Ou, então, se delegou a respetiva competência.
Afinal, os mitos revelam que o Mundo e o Homem têm uma origem sagrada, e mostram-nos como isso é importante como modelo e exemplo a ser seguido. Mais ainda, revelam que aquilo que o Homem pretende fazer já foi feito antes; logo que tal é possível e que os resultados são prováveis se se seguirem as regras prescritas.
Poder-se-á dizer, então, que a cosmogonia mítica é, na tradição arcaica, o modelo exemplar de toda a espécie de fazer. Tal comparticipação não só torna o “mundo familiar e inteligível mas ainda, e igualmente, transparente”.
7 - Talhar e cortar
Um dos mecanismos operacionais, mais usuais nestas práticas, em grande parte mágico-curativas é, aquilo a que se chama, “talhar” ou “cortar o mal”.
Assenta, o mesmo na crença popular de que certos tipos de doenças (especialmente aquelas que se manifestam de forma epidérmica em seres humanos ou animais) resultam, em última instância, da ação de bichos venenosos (“peçonhentos”) que através de mordida, parasitação ou simples contágio, envenenam o indivíduo provocando-lhe ardor e afeções na pele.
Animais que, mesmo tendo fugido para ignotas paragens, podem ser mortos (leia-se “talhados”) à distância, sob a forma de um ritual analógico. E sendo mortos, mesmo ritualmente, assim se mata o mal provocado.
Afinal, como diz a sabedoria popular: “morre o bicho, morre a peçonha!”
8 - Apaziguar e encomendar
Processos menos frequentes nas terapêuticas populares, casos há em que se desenvolvem atitudes de apaziguamento de entidades potencialmente nefastas (vistas como responsáveis voluntárias ou involuntárias) e encaradas como alguém não vulnerável a uma simples intimação verbal. Entidades, estas, objeto (muitas vezes) de processos concecionais de personalização.
Algumas (como a lua) constituem, provavelmente, sobrevivências de ações ancestrais relacionadas com potestades pré-cristãs ligadas, especialmente, às energias cósmicas.
Outras, como nas “sezões”, percebem-se, aí, eventuais persistências de entidades telúricas.
9 - Morte/renascimento
Finalmente, um outro tipo ancestral de magia simpática é aquele que podemos entender como uma recriação ritual* da morte/renascimento.
Não deixa de funcionar por analogia e semelhança (aqui, contudo, referentes ao tempo primordial) mas, neste caso, num contexto mítico especialmente simbólico. O novo nascimento faz morrer o homem velho e emergir o novo; supostamente imaculado e despojado de todos os males.
Constitui, assim, mais que uma mera prática de cura: um anular regenerativo de todos os males e deficiências, originais ou entretanto adquiridos. O indivíduo renasce de novo imbuído, plenamente, da perfeição dos primórdios.
No contexto terapêutico popular era comummente realizado com crianças (mais próximas ainda do momento de nascimento, que assim se repetia) mas abrangia, principalmente em tempos idos, igualmente os adultos sendo, aliás, usual em muitas religiões ancestrais. Persiste ainda, entre nós, em singulares práticas terapêuticas, cuja magia radica na intensa energia que se liberta da morte/criação de uma nova vida.
Por isso, nalgumas doenças (como o “quebrado”), se passavam as crianças por entre um ramo de silvão, carvalho, vime ou videira, aberto, de um lado para o outro, por indivíduos que serviam de “padrinhos” (nalguns casos os próprios padrinhos) frequentemente possuindo nomes propiciatórios, enquanto se entoava uma cantilena apropriada.
Em suma, de tudo isto (e não só) são feitas as componentes operativas dos rituais curativos: de gestos e ações que, com operacionalidades mágicas, se interligam em estreita simbiose e, procuram nas mais diversas substâncias que a natureza oferece, a marca de transcendentalidade capaz de provocar os efeitos desejados.
Afinal, para o homem tradicional, o mundo era composto de uma infinita e multifacetada profusão de perigos (que o envolviam, inquietavam e, quantas vezes, aterrorizavam) não admirando que a multiplicidade de práticas terapêuticas apenas tivesse limite nos incomensuráveis limites da imaginação humana: fórmulas e rituais mágicos, esconjuros e exorcismos, ações físicas, anatómicas e alimentares, apelos e encomendações religiosas ou dirigidas às potências cósmicas ou naturais mais ou menos divinizadas.
E, ainda, feitiços e contrafeitiços, apaziguamentos diversos, sacrifícios, recorrências a relíquias sagradas e utilização de substâncias naturais da mais diversificada natureza e aplicabilidade.
Todos, exprimem um carácter empírico e utilitário, que se funda na natureza multivalente (e, às vezes, ambivalente) do sagrado e se traduz em estratégias de manipulação de energias mágicas (religiosas ou não) bem como numa variada aplicabilidade das substâncias naturais, também elas, afinal (nos tempos de recolha e utilização e nos processo rituais de aplicação) reveladoras de uma clara virtude metafisica.
A Grande Guerra e as aparições de Fátima
Pode dizer-se, de forma
sintética, que a história política do século XIX constitui uma luta contínua
entre (por um lado) o liberalismo, assente no papel da burguesia e defendendo a
autonomia do poder temporal e, por outro, filosofias conservadoras em que a
nobreza e a Igreja funcionam numa sintonia mais ou menos orgânica, como
orgânica é a relação (poder-se-á dizer antidemocrática) entre a lógica de
sucessão aristocrática e a fórmula de ocupação dos cargos clericais.
Na verdade, tanto no sistema
aristocrático como na igreja, o poder (logo o exercício do poder) decorre de
Deus, seja por direito familiar seja por inspirada escolha dos seus pares.
Ora, para a burguesia, liberal e
racionalista, a origem primeva dos poderes irá transitar ideologicamente de
Deus para a Nação, com todas as implicações daí resultantes.
O anticlericalismo republicano
É este o
contexto que a República (no inicio de novecentos) vai encontrar e, em relação
ao qual, irá atuar. Imersos num processo revolucionário cuja febre se apodera
do país, os republicanos identificam a Igreja com a Monarquia e irão agir em
consonância.
Afinal, embora a esmagadora
maioria do povo seja católica, os sectores progressistas e intelectuais e a
opinião pública urbana (ou, se quisermos, aquela parte da população urbana que
tem opinião) nutrem, nessa época, um forte sentimento anticlerical.
Ora, a Concordata de 1848, tinha
aberto caminho a uma reafirmação do poder e influência tradicionais da Igreja;
cujo prestígio (pelo menos no interior rural) permanecerá inalterado e, talvez
até reforçado, pela hostilidade liberal.
Regressadas, as ordens religiosas voltam a enriquecer,
enquanto a nomeação secular dos bispos não impede uma cada vez maior obediência
ao Vaticano. As escolas permanecem nas mãos da Igreja. Os cerimoniais
religiosos continuam, afinal, a consagrar o ciclo de vida das populações.
E se os liberais tinham encarado
a teologia como boa e a sua aplicação como má, os republicanos vão bem mais
longe: considerando, simplesmente, que “a igreja não tem lugar na sociedade1”!
Expulsam, de novo, os jesuítas2,
separam a Igreja do Estado, despojam a mesma dos lugares de culto, proíbem o
ensino da religião nas escolas públicas, publicam a lei do divórcio, acabam com
os dias santos, exigem permissão para o exercício do culto, proíbem os símbolos
religiosos nos lugares públicos, etc.,..
Uma política radical destas, irá impressionar fortemente
as massas católicas, em grande parte ruralizadas. Que não compreendem as razões
sociais de tais estratégias e veem, em tudo isto, a obra do demónio.
Estados emocionais ir-se-ão radicalizar e exacerbar,
criando na população como que uma convicção plena de que estava a chegar o “reino do anti-cristo”.
Em Março de 1916,
Portugal entra na Grande Guerra. Tal facto há-de ser aproveitado pela Igreja e
levá-la, “juntamente com elementos laicos que lhe são afectos, a retaliar,
aproveitando naturalmente o aumento de religiosidade popular {ou, se
quisermos, com mais rigor, o aumento popular de religiosidade} que
acompanhou a entrada na guerra”.
A falta de referenciais simbólicos patrióticos ligados à
República, uma propaganda ineficaz e um exército pouco motivado (ligado que
estava ao ruralismo religioso e monárquico) colocam a Igreja como opositor
privilegiado3.
A falta de alimentos agrava a
conflitualidade latente. A igreja pintará de negro, ainda mais negro, a
situação existente.
Desencadeiam-se então motins
populares reprimidos, duramente, pelas forças da ordem, Movimentos grevistas,
já minimamente organizados, vão contribuir igualmente para alargar tais
agitações às zonas urbanas.
A hostilidade atinge níveis
elevados de intensidade. O clero, cerceado nos seus rendimentos e sentindo
diminuir a frequência à missa, reforça a ofensiva. Nos púlpitos, os padres
pregam abertamente contra a República.
Na zona de Fátima a situação não
é diferente. Situação que há-de levar à prisão do pároco de Fátima, do seu
superior imediato o Padre Faustino, do Vigário do Olival e, até, daquele que
virá a ser, posteriormente, o Bispo de Leiria.
Afinal a Primeira Guerra Mundial
onde perderam a vida centenas de milhares de soldados, constituiu para as
populações europeias (mesmo aquelas de que dela participaram à distância) uma
página extremamente negra da história europeia.
Numa guerra de trincheiras em que
dezenas de milhares de homens morriam, nalguns casos, para conquistar uns
metros de terreno ou um ponto estratégico mais elevado (que algumas vezes se
voltava a perder rapidamente) os soldados eram nessa altura, literalmente,
carne para canhão.
Marcado pela fome e respectivo
racionamento, o terror da mobiliação punha em desespero, próprios e familiares.
Terror que tinha evidente razão;
o índice de mortes era aterrador.
E é neste contexto que, em Maio,
surgem as aparições.
A Virgem e a menina
Pode dizer-se, a
propósito, que as aparições constituem manifestações hierofânicas decorrentes
de determinadas condições sociais, assentes em catalisadores culturais bem
definidos e tendo como elemento polarizador a personalidade do vidente!
As divindades aparecem sempre aos
seus particulares devotos ou, em casos especiais, antagonistas; indivíduos que
com eles possuem intensas conexões positivas ou, ocasionalmente, negativas.
As suas configurações refletem sempre
os modelos estereotipados que imagens e gravuras iconográficas apresentam em
templos ou edições canónicas e que impregnam, fortemente, o folclore religioso
local
Corria, então, o
ano de 1917 e o país encontrava-se mergulhado na tal conjuntura social e
política difícil; envolvido externamente na Grande Guerra e internamente numa
acesa conflitualidade entre o Governo da República e a Igreja. Tudo isto no
contexto de um tecido social ruralista e conservador, de incipiente nível
educacional e em que as sucessivas homilias dos milhares de igrejas, todos os
domingos condicionavam, fortemente, mentes e corpos.
Preocupado com a guerra, o Papa
Bento XV envia, em 5 de Maio, uma missiva/apelo aos católicos de todo o mundo,
para participarem, numa cruzada de orações, dirigidas à Virgem, cujo objetivo era fazer “conhecer aos episcopados do mundo inteiro
o nosso ardente desejo de que se recorra ao coração de Jesus, trono de graça e
a que a esse trono se recorra por intermédio de Maria4”.
Um pedido expresso papal concretizado
numa linear ordem litúrgica: nas litanias à Virgem, dever-se-ia, daí em diante,
acrescentar: Rainha da Paz! Rogai por
nós!
Para os crentes existia uma óbvia
discrepância e um “quase sacrilégio entre
as palavras da Virgem e a insistência do Governo em enviar mais 4000 homens
para França5”.
Deste modo, desde o início,
Fátima (tal como, noutro contexto, La Salette e Lourdes) que, é um facto,
constituiu um inegável manifesto contra a estrutural laicização em curso que a
República personificava, utilizará a guerra como elemento agravante na
formulação explícita do libelo acusatório.
Esta mensagem
foi, provavelmente, transmitida em Fátima na missa de domingo, a 13 de Maio.
Diz Alfaric (e não é propriamente difícil concordar com ele) que, tudo leva a
crer, a mesma terá sido, aí, “comentada
pelo pároco sob uma forma simples e ingénua, como convinha ao auditório
respectivo6”.
Ora, Lúcia, tinha um irmão na
iminência de ser mobilizado e, também por isso, é de admitir como muito
provável que tal problemática a tivesse afetado e impressionado de forma muito
particular.
Fosse como fosse, numa vivência
campestre extremamente dura, o dia do
senhor não obstava a que o gado tivesse de ser alimentado, assim se
compreendendo que, após o serviço religioso, Lúcia e os primos se aprestassem a
tirar os rebanhos para os levar a
pastar, durante algum tempo, no local habitual.
Ao meio-dia (dizem as crónicas)
os três rezam e comem. Não custa adivinhar que a problemática da guerra e da
possibilidade da intervenção divina esteja de alguma forma presente, explícita
ou implícita, na citada oratória e, naturalmente, nas respectivas mentes
infantis.
Não nos esqueçamos que estamos a
falar de crianças; cujo mundo se resume ao que os seus sentidos percecionam, a
um imaginário cultural que as envolve e a uma educação quase exclusivamente
religiosa. Crianças, em que o real e o simbólico de uma teologia
necessariamente prosaica, se confundem em inconsciente simbiose.
De repente, um relâmpago cruza os
céus. Fogem com os animais para casa mas surge um segundo relâmpago e depois um
terceiro, que quase os cega.
E é nessa altura que, segundo
Lúcia, ela vê uma figura feminina aparecer sobre a forma de uma luz
resplandecente.
E assim se inicia um processo
que, após algum tempo de hesitação e desenvolvimentos algo inesperados, há-de
levar ao reconhecimento dos fenómenos por parte da Igreja e após um processo
gradual de adequação dos testemunhos (que termina, apenas, duas décadas atrás),
criar as condições que hão-de conduzir à construção, material e espiritual, do
grande santuário aí existente.
Entre Maio e Outubro as notícias
espalham-se rapidamente num tecido social e numa conjuntura, social e política,
propícia. O número de peregrinos aumenta vertiginosamente.
Em Outubro a anunciada revolução bolchevique
na Rússia (cujo temor configura já os respectivos fenómenos fatimitas), agrava
ainda mais a inquietação e incrementa o pânico do comunismo; visto, este, como
a encarnação mais completa do Diabo.
E é afinal, nesta época de
especial perturbação, interna e externa, que Fátima irá caldear as suas
condições de afirmação.
O fim da guerra
Um dos temas de
diálogo entre Lúcia e a Virgem será, como se sabe, o fim da guerra.
A previsão mais
famosa das mensagens fatimitas teve a ver, precisamente, com a ansiada data do
fim do conflito.
Aliás, talvez nenhum outro aspeto tenha contribuído tanto
para desprestigiar os fenómenos fatimitas (principalmente entre os não crentes)
como a previsão do fim da Grande Guerra, anseio, à época, particularmente
premente.
Afinal, o conhecimento do futuro foi sempre, em todas as
sociedades, um desiderato de especial importância e, o seu alegado sucesso,
condição de excecionalidade sempre prodigiosa.
E, de uma forma ou doutra, sempre a premonição, feita
muitas vezes profecia, esteve ligada ao transcendental; religioso ou não,
doutrinário ou não! De uma maneira geral, as potestades apresentam-se como
detentoras do conhecimento de um futuro visto sempre como determinável e, do
qual, de alguma maneira, são igualmente artífices.
A sua revelação é, contudo, naturalmente interdita. A não
ser, é claro, em ocasiões muito especiais; a confidentes muito especiais!
O anúncio do fim da guerra, feito pela Virgem a Lúcia,
pretendia ser, assim, mais um milagre pretensamente probatório da excecionalidade
divina das epifanias fatimitas.
Pretendia,.. mas não foi!
Porque, ao contrário das profecias pitonísicas, esta,
falha redondamente!
Porque veiculado por uma adolescente, inculta, embora
convicta da sua singularidade, não se encontrava dotado dos mecanismos
preventivos necessários que pudessem obstar à uma eventual desacreditação8.
Faltava-lhe o carácter de contingência que é próprio dos
mecanismos premonitórios desde o início dos tempos. A saber; uma profecia
difusa e eventual, de multiplicidade interpretativa e eivada de
condicionalismos funcionais que, em si mesmos, constituam defesas necessárias
(e, quase sempre, suficientes) contra resultados imprevistos e indesejáveis9
Aqui, a revelação (feita premonição), é simplesmente
linear: “a guerra acaba hoje; esperem cá pelos militares muito em breve”,
afirma perentoriamente a Senhora, tal como Lúcia revela, ao padre
Marques Ferreira (um dos autores mais fiáveis), escassos dias após o
acontecimento10.
Mas, já no próprio dia treze, interrogada pelo Cónego
Formigão, tinha declarado ao mesmo, e cito: “que a guerra acabaria ainda
hoje e esperássemos pelos nossos soldados muito em breve11”.
O mesmo diz, aliás, Avelino de Almeida, enviado especial
do Jornal O Século e testemunha direta, referindo-se ao que ouviu, precisamente
a 13 de Outubro, na Cova da Iria: “Lúcia fala com a Virgem e anuncia, em
ademanes teatrais, (..) que a guerra terminara e que os soldados iam regressar12”.
Bem, ainda, como o padre Ferreira de Lacerda, em inquérito
efetuado ainda durante o mês de Outubro, onde a vidente volta a afirmar que a
Virgem lhe dissera “que a guerra acabaria ainda hoje e que esperássemos
pelos nossos militares muito em breve13
Não é assim de admirar o incómodo com que esta
problemática tem sido tratada. Incómodo já presente no jornal católico O
Mensageiro de Leiria que, a 18 de Outubro de 1917 (quando já se sabia que a
guerra não terminara), e numa interpretação muito livre, traduz tal revelação
da seguinte maneira; “a guerra acaba por estes dias, brevemente os soldados
regressam a Portugal14!
Até porque, não conscientes do imbróglio que criaram, as
crianças (principalmente Lúcia), insistem em afirmar que a Virgem tinha
anunciado o fim da guerra para próprio dia 13 de Outubro.
Por exemplo, em dezanove do mesmo mês, o Cónego Formigão,
incomodado naturalmente com a imprecisão factual, volta a interrogar Lúcia
acerca das palavras precisas que a divindade pronunciara. Esta responde-lhe: “disse
assim; a guerra acaba ainda hoje. Esperem cá pelos vossos militares muito em
breve”.
Bem se esforça Formigão por obter resposta diferente ou
que, pelo menos, pudesse ser objeto de diferente interpretação.
- “Algumas pessoas afirmam que te ouviram dizer, nesse
dia, que Nossa Senhora tinha declarado que a guerra acabava brevemente. É
verdade!”
- “Eu disse, tal e qual, como Nossa Senhora tinha
dito!”
E só após pacientes e demoradas insistências consegue que
a mesma admita que pode estar enganada:
- Não me recordo já bem como ela disse. Poderia ter
sido isso, não sei... talvez não entendesse bem a Senhora15
E foi tudo o que Formigão conseguiu, neste processo de
inquirição eivado de induções e de, implícitas e, explícitas, sugestões.
À distância, o que se pode deduzir daqui, é que a
convicção de Lúcia (tivesse ela a origem que tivesse) se manifesta como
substancial. Aliás, ser submetida a sucessivos interrogatórios por personagens
particularmente temerosos na sua respeitabilidade e continuar a afirmar,
sucessivamente, a “sua verdade”, é algo digno de registo.
Comprova assim, de alguma forma, não só a firme convicção
que é própria dos videntes em geral mas, igualmente, as idiossincrasias que
normalmente lhe são imputadas: um carácter pouco impressionável e uma vontade
especialmente forte.
Postas as coisas nestes termos, não é assim de admirar que
o processo de credibilização vintista tenha, igualmente, gerado tentativas
canónicas diversas destinadas, se não a ultrapassar as incongruências
existentes, pelo menos a revesti-las de uma dúvida minimamente razoável.
Por exemplo, em 1924, Lúcia deporá num inquérito com esse
propósito e aí afirmará, tentando (dir-se-á) dourar a pílula: “parece-me que a Senhora disse: a guerra
acaba hoje mas, minha prima Jacinta, disse-me em casa, que a Senhora falou
assim: convertam-se que a guerra acaba dentro de um ano16!”
Tudo isto, não o esqueçamos, quando Jacinta tinha falecido
já há muito e há muito se sabia, naturalmente, quanto tempo, ainda, tinha
durado a guerra.
Contudo, mesmo esta tentativa (algo desconexa) acaba por
se revelar insustentável. Na verdade, a própria Jacinta, no referido 19 de
Outubro de 1917, inquirida igualmente pelo Cónego Formigão (que lhe fazia notar
que a guerra continuava, à revelia do que ela e a prima tinham afirmado), dirá
a propósito, num diálogo surrealista que só a ingenuidade infantil pode
explicar:
- Nossa Senhora
disse que quanto chegasse ao céu a guerra acabava.
- Mas a guerra não
acabou!
- Acaba, acaba - insiste a pequena na simplicidade dos seus
sete anos.
- Mas, então, quando
acaba?
- Cuido {penso} que acaba no domingo17!
Insustentáveis, ou não, tais adequações acabarão por, à
falta de melhor, atenuar a incongruência de uma inexatidão de facto,
extremamente gravosa da credibilidade dos fenómenos.
Incongruência que, afinal, só poderia acarretar duas
explicações: ou a Senhora mentiu ou
enganou-se (e deste modo não seria uma divindade) ou Lúcia mentiu ou enganou-se
e, deste modo, punha em causa a fiabilidade não só das aparições mas, e
principalmente, dos diálogos aí travados, de que é, quase em absoluto, única
sustentadora.
Compreende-se, assim, porquê o Cónego Formigão, que bem se
esforçou (neste como noutros casos), por adequar convenientemente os
testemunhos, reconhecerá em 1921, na primeira obra publicada sobre Fátima, ao
analisar as diferentes opiniões que estes acontecimentos geraram no seio da
igreja: “as affimações das creanças
relativas ao próximo fim da guerra contribuíram para essa divergência de
opiniões18”.
Deste modo, as décadas seguintes hão-de assistir a um
suceder de alegadas explicações, algumas particularmente imaginativas, numa
tentativa desesperada de explicar o inexplicável.
O resultado podemos encontrá-lo, já em 1954, numa
afirmação atribuída a Lúcia: “Devido
talvez a preocupar-me com a preocupação das diversas graças que tinha para
pedir a Nossa Senhora, houve engano de entender que a guerra acabara no próximo
dia treze19”.
Por isso as versões (pelo menos oficiosas) deste episódio,
hão-de alterar as palavras supostamente divinas por outras menos problemáticas.
A exemplo de Deidre Manifold, uma escritora apologética, cuja versão moderna é,
na verdade, bem mais conveniente: “a
guerra vai acabar e os militares voltarão, em breve, para casa20”.
Mas a problemática da guerra não vai ficar por aqui.
Impregnará, por gradual afetação, os famosos três segredos de Fátima; (questão
desenvolvida muito mais tarde), nomeadamente no que concerne à componente visão do Inferno.
Afinal, só em 1941 tal temática adquirirá
contornos de elaboração e adequação doutrinária, embora naturalmente
contextualizados pela conjuntura temporal.
Fica-se assim a saber que o primeiro segredo é, não só uma descrição
do inferno, mas inclui, ainda, uma vertente profética, que a sua divulgação,
posterior aos acontecimentos, permite ser agora mais certeira21!
“A guerra vai acabar {a Primeira Guerra Mundial assinale-se} mas no reinado de Pio XI, começará outra
pior. Quando virdes uma noite alumiada por uma luz desconhecida sabei que é o
grande sinal que Deus dá22”.
Se acreditarmos que estas
revelações são oriundas de 1917, apesar de (por insondáveis desígnios divinos)
só se terem tornado públicas depois dos acontecimentos se terem verificado
então, teremos igualmente de admitir que as mesmas não só previram o início da
Segunda Guerra Mundial, como também a aurora boreal que a anunciou e, ainda,
que o papa que reinaria, nesse tempo, teria o nome de Pio XI!
Seja como for, pode dizer-se que a questão da guerra é
transversal a todos estes episódios primevos que criaram o grande altar do
mundo que Fátima, hoje, é.
Fator causal e configurador dos referidos episódios, pode
dizer-se que, sem a Grande Guerra (e, já agora, sem a conflitualidade com o Governo Republicano),
esta dificilmente aconteceria.
Afinal, Fátima é a expressão
promovida de acontecimentos hierofânicos várias vezes verificados e repetidos,
em diversos tempos, com diversas configurações e em diversificados cenários
conjunturais e socioculturais.
[1] Manuel Tiago Martins, op, cit., p. 26.
2
Desde que estrangeiros ou naturalizados. Aliás pela importância que tinham na
Igreja portuguesa, os jesuítas foram, diversas vezes, usados como bodes
expiatórios e expulsos do país. Pela Monarquia Absoluta, pelos liberais e,
neste caso, pela República.
3
Filipe Ribeiro de Menezes. op. cit., p. 134.
4
Cónego Barthas, op. cit., pp. 10 e 11.
5
Filipe Ribeiro de Menezes. União
Sagrada e Sidonismo: Portugal em Guerra, op. cit., p. 133.
6 Prosper Alfaric, op. cit.,
p. 38.
7
Cónego Barthas, op. cit., p. 265.
8 Aliás se pretendesse-mos
um fator validador da hipótese taumatúrgica auto-induzida, uma profecia destas
serviria, perfeitamente, de exemplo cabal. Nenhuma divindade erraria dessa
maneira, nenhuma conjura clerical cairia na asneira de prever, de forma
absoluta, algo que não estava nas suas mãos acontecer. Por isso Ilharco (adepto
desta última) é obrigado a considerar tal afirmação como constituindo uma
decisão autónoma de Lúcia; independentemente das, por si defendidas,
orientações clericais. Na verdade, a afirmação é de Lúcia (como, provavelmente,
todo o processo) talvez aqui entusiasmada com a crescente importância dada às
suas palavras, susceptíveis de a fazer acreditar cada vez mais em si e na
construção mística que ia criando. Além disso, não podemos esquecer que estamos
a falar de crianças de tenra idade, pouco instruídas, cujo imaginário se resume
ao tradicional coletivo e àquilo que a família e a Igreja lhe iam transmitindo.
Crianças que tinham natural dificuldade em separar a imaginação da realidade.
9 Por exemplo, aquele que
(embora sem carácter profético), é aplicado às respostas da Senhora (nas
aparições propriamente ditas), às solicitações de curas por parte de Lúcia. “Daqui
a um ano encontrará melhoras” diz a Senhora; expressão dúbia com
resultados que podem significar muitas coisas e, ser interpretados, de muitas
mais. Ou, então, “se se converter, curar-se-á durante um ano”,
concretizando-se agora o ato e o tempo mas fazendo depender tal desfecho de uma
condição, em rigor absoluto, nunca comprovável.
10 Padre Marques Ferreira,
Pároco de Fátima: in Costa Brochado; Fátima à Luz da História, op. cit., pp.
325 e seguintes.
11 Visconde de Montelo, As
Grandes Maravilhas de Fátima, op, cit., p. 99.
12 Avelino de Almeida, Jornal
O Século de 15 de Outubro de 1917.
13 Padre Ferreira de
Lacerda, Jornal O Mensageiro de Leiria, nº 160, de 2 de Novembro de 1917.
14 Jornal O Mensageiro de
Leiria, nº 158, de 18 de Outubro de 1917.
15 Visconde de Montelo, op,
cit., p. 109.
16 Revista Brotéria de Maio
de 1951, p. 519.
17 Visconde de Montelo, As
Grandes Maravilhas de Fátima, op, cit., p. 117.
18 Visconde de Montelo, Os
Episódios Maravilhosos de Fátima, op, cit., p. 10.
19 Visconde de Montelo,
citado em Fátima Altar do Mundo, fasc. XVI, op. cit., p. 96.
20 Deidre Manifold, Fátima;
a Grande Conspiração, op, cit., p. 23.
21
Enfim, não tão certeiro como isso no que respeita ao fazer coincidir o início
da Segunda Guerra Mundial com o pontificado de Pio XI.
22
Terceira Memória de Lúcia, op, cit., p. 219.
Inferno na Terra
No mar de chamas em que o país tem estado mergulhado, continua a notar-se,
hoje como ontem, nos mais diversos jornalistas e politólogos de serviço, uma
excessiva postura analítica de conjunturalidade.
Conjunturalidade, que se funda numa opção consciente de crítica às
situações próprias do momento (sempre da responsabilidade, dos famigerados, opositores
políticos) e esquecendo, situações estruturais diversas, que permitem que, nestes
fenómenos, independentemente de eventuais falhas de comunicação ou de enviesados
contratos de meios aéreos ou de apoio logístico às forças no terreno (que,
naturalmente, devem ser investigados), sejam visualizadas causas
proporcionadoras bem mais abrangentes, persistentes e profundas.
Porque é de causas proporcionadoras que falamos. Catalisadoras ou,
simplesmente, facilitadoras.
E porquê, afinal, toda esta ligeireza?
Porque uma análise mais alargada no tempo (diacrónica, se quisermos) pode
fazer remontar culpabilidades ao tempo em que (na nossa habitual alternância partidária)
alguns dos críticos individuais ou institucionais de hoje eram, afinal,
responsáveis de ontem.
Ou, porque, achamos que tal corresponde, indiretamente, a uma intenção
de desculpabilização dos atuais governantes.
Ou, já agora, porque as questões estruturais não se reconhecem numa
temporalidade eleitoral; leia-se, eleitoralista.
Daí, o debate, esquecer, quase sempre, as mais importantes causas em
presença. Estruturais, globais e anualmente agravadas.
- Causas que começam, logo, pelo aquecimento global. De que muito se fala
em termos teóricos e globais (ecologicamente corretos) mas que, pelas razões
expostas e não só, nos esquecemos de relevar a sua evidente influência operativa,
aqui e agora.
Aquela que torna usuais temperaturas de quarenta e muitos graus;
algumas décadas atrás praticamente insólitas.
E que torna as formas
tradicionais de combater os fogos pouco adequadas a estas novas condições
climatéricas.
- Causas que se relacionam, igualmente, com a desertificação do interior;
em função do qual o, ciclicamente badalado “Ordenamento do Território” surge, em
grande parte, como uma espécie de miragem.
Primeiro, porque qualquer intervenção significativa neste domínio
implica grandes e demorados investimentos e um, ainda mais demorado,
desfasamento entre os mesmos e eventuais resultados visíveis. É, portanto, uma
opção que não comtempla, facilmente, as habituais temporalidades que norteiam a
nossa classe política.
Segundo, porque necessitamos, pura e simplesmente, de ordenar quase
todo o território nacional. Principalmente o interior desertificado e deixado,
há décadas, entregue ao crescimento desordenado de mato e arvoredo.
Em que a crescente ausência das populações acarretou um enorme
problema demográfico e territorial. Não só no proliferar descontrolado de
árvores e mato particularmente consumíveis (que, esclareça-se, ocupam hoje não
só as anteriores zonas florestais como, ainda, uma parte, cada vez maior, de
espaços que estavam ocupados com aldeias (hoje desertas), hortas, lameiros,
pastagens, zonas cultiváveis e frutíferas), como ainda tem levado,
naturalmente, ao mais completo abandono da limpeza das matas.
Situação que não se resolve, só por si, com leis que obrigam à sua
limpeza.
Até porque as mesmas, em muitas zonas do país, não são, sequer,
exequíveis.
Afinal, grande parte dos detentores de terras do interior (fundiariamente
microdivididas) está ausente temporária ou definitivamente (da região ou do
país) e, alguma dela, até já deste mundo. Os seus descendentes cortaram,
quantas vezes, as relações com muitos pedaços de terra dos quais, às vezes, nem
sequer conhecem a localização.
E, a cada vez mais exígua população residente, é constituída por
pessoas idosas e empobrecidas que não possuem condições para limpar os seus
terrenos (nalguns casos nem, sequer, do próprio quintal), e, ainda menos, pagar
a alguém que o faça.
É esta a situação deplorável que
décadas de incúria provocaram.
- Causas, finalmente, que assentam na inadaptação da justiça a este
tipo de crimes. Que o país ainda não percebeu (ou não quer perceber), não podem
continuar a ser tratados como até aqui. Não só porque estes têm, hoje, uma
consequência incomensuravelmente maior, como é este um sector no qual operam
(há décadas) diversas organizações criminosas.
Não são, assim, apenas questões psíquicas e patológicas as aqui envolvidas.
Mas, sim, um verdadeiro crime organizado.
As investigações têm, portanto de ir mais fundo e mais longe e as
sanções tem de ser mais pesadas e, principalmente, adequadas a este tipo de
crime. Eventualmente, sei lá, fazer os pirómanos pagar as penas de prisão nos
meses anuais propícios aos incêndios*.
Afinal, este é um crime em que todo o território constitui uma
potencial área de vulnerabilidade. E não pudemos fiscalizar, total e
absolutamente, todos os cantos e recantos deste país.
Onde, a esmagadora maioria da população vive hoje num quinto do
território; com todos os problemas de concentração demográfica daí resultantes.
Enquanto no resto do país, em povoações em estado acelerado de
desaparecimento, subsistem (num limbo existencial) escassos idosos,
especialmente vulneráveis ao abandono, a ações criminosas e aos efeitos
dramáticos das mais diversas intempéries.
E, enquanto isto, vamos alimentando estéreis e levianas guerrilhas
partidárias que, para mais não servem, muitas vezes, que tomar a “pole
position” na grelha de partida acusatória.
Acusar o outro; antes que me
acuse a mim.
*Há um ano, precisamente
(num artigo de opinião publicado num periódico regional) advogava, já, esta
opção penal. Soube agora que o Parlamento acabou de aprovar uma lei para obrigar
os piromaníacos a prisão domiciliária, com pulseira eletrónica, durante o
período dos incêndios.
A ideia é a mesma,
embora, não se tenha ido tão longe. Afinal, a pulseira, não obsta, em absoluto,
que os ditos continuem a atear fogos.
Apenas os coloca no
lugar; o que facilita a imputação de responsabilidades.Resta saber se, para
maníacos (pagos ou não), isso é assim tão importante.
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