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quinta-feira, 14 de setembro de 2017

A arte de curar e o entendimento popular do mal

Poder-se-á dizer que na tradição popular portuguesa o mal surge, normalmente, como decorrente não de um qualquer mau funcionamento orgânico, mas de algo que existe para lá (e independentemente) deste e da sua ação manifesta. Doenças são atribuídas às mais diversas entidades mais ou menos maléficas. Azares, transcendentalmente interpretados. Acidentes têm quase sempre, por detrás, sobrenaturais e, quantas vezes tenebrosas, causalidades. Naturalmente, diversas razões são vistas como responsáveis (em termos imediatos), pelas diversas moléstias que afetam os homens e os infernizam. Tipologias que vão desde a “possessão” por mortos, “espíritos” ou “demónios” a malefícios decorrentes de “pragas”, ”enguiços” e “sortilégios”, passando por “animais peçonhentos” que percorrem o corpo”, pelos misteriosos e ignotos “ares maus” que impregnam de pestilência a saúde individual ou, mesmo por supostas anomalias anatómicas; empíricas e analógicas. Por malefícios individualizados e suscetíveis de serem corporizados em ignotas entidades, mesmo que exteriores a uma assídua ambivalência. Ou, ainda, por outros malefícios; decorrentes da inveja. Ou por castigos divinos concomitantes, ou não, com anteriores causalidades. Diversificadas são, deste modo, as causas associadas às disfunções corporais ou psíquicas, tal como a mentalidade popular as entende. Tão diversificadas como as soluções terapêuticas existentes e consideradas apropriadas. Afinal, na tradição popular, as alternativas de cura nunca são de mais. Pelo contrário; o crente não considera incoerente, perante uma doença (para lá da obrigatória consulta ao médico), fazer uma promessa ao santo da sua particular devoção, desenvolver um ato de cura mágico ou exorcístico ou recorrer a uma qualquer “curandeira”/”benzedeira” de conhecida, ou não, natureza e proveniência. E, hoje, num mercado terapêutico mais vasto, recorrer, ainda, a outras opções. Seja como for, pode dizer-se que as curas têm uma lógica própria. Não experimental, mas experimentada. Não assentando na razão científica, mas na analogia homeopática, holística e transcendental. Entendendo o Cosmos como um repositório de energias que fluem e refluem em ignotos campos e dimensões. E cujo conhecimento (hermético, em maior ou menor grau), permite instrumentalizá-las em peculiares ações mágicas mais ou menos ritualizadas. Mesmo aquelas que, pela sua singularidade, surgem, à primeira vista, como macarrónicas e inexplicáveis. Inexplicáveis para nós, já se vê! Indivíduos do século XXI, portadores de uma visão do mundo que, pela omnipresença técnica que nos envolve, tendemos a considerar única. Esquecendo-nos que a mesma vigora, apenas, há duas ou três centenas de anos; segundos, mesmo pela cronologia do mais imediatista relógio cósmico. Vistos em termos de diagnóstico, os males são os sintomas (ou, melhor dizendo as expressões visíveis dos mesmos) bem como as respetivas manifestações físicas e fisiológicas igualmente visíveis; quantas vezes secundárias e complementares. Mais que atacar causas tenta-se, assim, colmatar efeitos. Não obstante existem casos em que a cura tenta atingir o elemento causador (ou, pelo menos, o suposto causador) da respetiva enfermidade. Por exemplo, ao “talhar-se o cobrão” ou “os sapinhos” (embora o episódio ritual decorra no corpo enfermo) o objetivo é matar, através de uma ação mágica, o “animal peçonhento” causador. Por isso se nomeiam os diferentes cortes aplicados do rabo à cabeça e se manifesta o desejo ritual de que o mesmo se “quede” (pare), “morra” ou “mirre”: entenda-se, sucumba por degeneração. Por isso, no Barroso, onde se considera que “a mordedura do licranço não tem cura nem descanso”, a única solução, acredita-se, está em matar o dito. Por isso, em muitas regiões do país, as dores das picadas de silvas ou piteiras, se tiram cortando, cerce, o pico causador. Portanto, se não se pretende, muitas vezes, atingir a causa efetiva do mal (desconhecida, afinal), pretende-se, contudo, atingir a causa hipotética: na verdade, aquela que, na perspetiva terapêutica popular, corresponde a tal. Neste sentido, muitas das terapias tradicionais envolvem processos metodológicos e de conteúdo, que assentam a sua eficácia em supostas relações mágicas e numa lógica de equivalência entre representação e representado. No contexto apelativo, os santos cristãos, fruto de naturais funcionalidades de conjuntura, constituem as mais vulgares das entidades solicitadas. Masculinos ou femininos (na sequência da absorção sincrética de divindades pré-cristãs das quais herdaram valências e competências), os mesmos tornar-se-ão, com o tempo, advogados privilegiados das mais particulares doenças e desfavores. Potenciando tudo isto, surgem otimizações ou degenerações propiciatórias, próprias de temporalidades, terminologias e configurações, cujo conhecimento os oficiantes transmitem em arcanas e singulares iniciações. De forma especialmente sintética e sem pretensões exacerbadas de rigor sistematológico debrucemo-nos, então, sobre nove paradigmas concetuais caraterizadores das mais usuais terapias populares ritualizadas, encontradas no nosso país. Tais como elas, afinal, nos chegaram. 1 - A força das palavras As fórmulas oratórias constituem o cerne da maioria dos atos de cura. Das palavras proferidas emerge um intrínseco potencial terapêutico cuja eficácia se encontra numa proporção direta do rigor das mesmas e da salvaguarda da sua incorrupção. Porque são palavras sagradas, vistas como remontando a tempos ancestrais. Ao início dos tempos, afinal, bebendo, assim, do poder e prestígio dos primórdios. Aliás, na medicina popular, o reforço do potencial curativo serve-se, muitas vezes, de uma peculiar estratégia. Começa-se por proferir uma asserção evidente do tipo: “Jesus é filho de Maria”, “Menino Jesus é verbo”, “Deus é toda a claridade”, etc. Asserção verdadeira e inquestionável, porque sagrada. Algumas, remetendo para acontecimentos bíblicos ou não apresentam-se, até, como explícitas analogias operativas: “Assim como Nossa Senhora sarou da sua paridura, assim tu sares da tua abertura”. Aproveita-se, assim, a semelhança assertiva para potenciar a ação respetiva. Seja como for, a força que emana das palavras proferidas é incontestável. A sua eficácia, se não maculada por erro na sua proclamação ritual ou contaminada por ruido corruptor, surge como inquestionável. Recorre-se, portanto, à repetição arquétipa dos males ou das curas a efetuar, enquanto ação mágica abrangente e operativa. Nomear as curas, corresponde a criá-las; a gerá-las a partir do indiferenciado primevo. Das palavras proferidas emerge, poder-se-á dizer, a realidade concreta nomeada. 2 - O poder da transgressão Omnipresentes são aqui as situações propiciatórias relacionadas com os tempos de transição anual. Descontinuidades temporais, caracterizadas pela transgressão que a rotura explica. Oriunda de um hiato na ordem estabelecida. Veiculando portentosas energias criadoras que emergem, em última instância, do limbo ou do “Além”. Que podem ser e são, aproveitadas muitas vezes com intuitos curativos ou regeneradores. Principalmente na singular sobrevivência de roubos rituais associados a muitas delas. Roubar telhas, feixes de vides, imagens de santos. De um local específico ou indeterminado. Sagrado ou (hoje) meramente profano. Levado de e/ou para a igreja. Entregue ao santo ou feito contatar com este ou com uma componente iconográfica da respetiva “imagem”. Sempre, contudo, a presença do elemento de transgressão; mesmo que ritualizado. Pretende-se assim (em malefícios vistos como particularmente difíceis de erradicar), somar a habitual força do esconjuro, com as energias subversivas emanadas do ato imprecatório e subversivo. Também a energia libertada por uma ação de grande violência pode ser canalizada como potencial curativo. Por isso a “espada que matou excomungado” ou a simples “corda de enforcado” eram vistos como possuindo especiais virtudes terapêuticas. 3 - A expulsão do mal Decorrente do conceito tradicional de mal, visto de alguma forma, como uma entidade autónoma e identificável, surgem no imaginário terapêutico popular, diversificadas práticas de extirpação e expulsão do mesmo, que dão corpo à mais prolífera tipologia tradicional de práticas curativas. Afinal, se o mal pode entrar, também pode sair. E se orifícios corporais como os olhos, boca, ânus, ouvidos, nariz e extremidades como as unhas, são vistos como potenciais locais de entrada, também podem, naturalmente, funcionar como pontos de saída. Assim os mecanismos rituais se revelem adequados e a sua formulação verbal ou gestual, rigorosa e eficaz. Mas o mal pode ainda ser chupado através da pele: mais precisamente através dos orifícios por onde entrou o veneno de uma víbora ou daqueles provocados pelas sanguessugas ao sugar o sangue inquinado de contusões e hematomas. Ou, ainda, através dos orifícios naturais da pele: para isso utilizando-se, ancestralmente, ventosas ou “pedras de peçonha”: cujas misteriosas adesões ao corpo eram vistas como correspondendo a um prodigioso absorver do mal. E até o cuspir desempenha, aqui, papel de relevo, tanto entre nós como em muitas outras culturas. Assim como se chupa, absorvendo o mal por osmose ou fazendo-o sair através do sangue, também se usava expeli-lo; projetando-o incorporado em resíduos corporais. Cuspir, por exemplo, sempre foi visto como um ato de rejeição e expulsão sendo, neste caso, utilizado para expelir o mal do corpo do indivíduo. Aliás cuspir, quando se passa por um inimigo é, desde sempre, forma de repúdio. Atualmente, aliás, paradigma de ato ofensivo. O próprio vomitar ou urinar (provocando, nalgumas situações, alívio imediato) tem servido, igualmente, semelhantes propósitos. 4 - Esconjurar Esconjurar o mal através de uma fórmula mágica oral e gestual para um local tão longínquo e remoto que o mesmo daí não possa voltar é, no entanto, um dos métodos mais usuais. Contudo, existe sempre a hipótese do lugar estranho e distante para onde o mesmo foi desterrado, não proporcione, afinal, um exílio permanente. Por isso a mentalidade popular gera criativos degredos que se exprimem, muitas vezes, numa espécie de trabalhos forçados, pela sua natureza, simplesmente irrealizáveis. Ou então, envia-o para o “Além”. Limpando as feridas com um pano, depois colocado sob a cabeceira de um defunto, ao mesmo tempo que, entredentes, se diz; “fulano, leva-me isto para o outro mundo”. Ou, ainda, escondê-lo, de onde não possa sair e não o possam encontrar. Deixá-lo cair (enquanto corporizado em bagos de milho ou pedras de sal) durante o caminho ou abandonando-o; como que involuntariamente. “Perdendo-o”, afinal. Finalmente, ameaçá-lo; afugentando-o de tal maneira, que não lhe passe pela ideia tornar a voltar. Contudo, como dissemos, esconjurar nem sempre corresponde a expulsar o mal para nenhures. Algumas vezes procura-se, implícita ou explicitamente, um novo hospedeiro; especialmente humano ou animal. Portanto, o mal deve ser enviado ou para um local que o mesmo não possa abandonar, para um lugar tão separado de nós como o “Além”, tão distante que não pressuponha retorno ou, ainda, para um hospedeiro dispensável ou que, sendo um estranho, não se possua em relação ao mesmo, qualquer sentimento de solidariedade. 5 -A conexão mágica Frequentemente, as práticas curativas lançam mão de processos rituais que recorrem a diversificadas funcionalidades e operacionalidades mágicas. Embora constituindo o cerne do processo em presença, não deixam de se interligar com ações apelativas e oratórias, apaziguadoras ou encomendatórias ou recorrer ao uso mais ou menos frequente de substâncias naturais, cuja aplicação (ritualizada ou não) contribui, naturalmente, para a eficácia da terapêutica. Mas o potencial determinante resulta, acredita-se, da maneira como se desencadeia o respetivo ritual. Omnipresente, de uma forma ou doutra, é aqui a recorrência ao potencial analógico; simpático dir-se-á. Muitas fórmulas assentam o seu poder curativo nesse referencial, que se pode incrementar através, por exemplo, de expressões como a começada por “Assim como….”, Também a magia de contágio marca, aqui, lugar de relevo dando, inclusive, origem a algumas das mais bizarras práticas encontradas. Por exemplo, crianças traquinas (quantas vezes, com certeza, hiperativas) eram antigamente “amansadas” batendo-lhes com a cabeça em certas “imagens de santos” como São Marcos; vistos, pela tradição popular, como amansadores de animais bravos. Em São Marcos da Serra, “a cada verso seguia-se uma violenta cabeçada, de sorte que a criança, atordoada, ficava mansa”. 6 - Mitos primevos As situações de repetição (leia-se recriação) dos mitos primordiais, surgem dos fundos dos tempos como sobrevivências arcanas (hoje quase exclusivamente cristianizadas), próprias de um tempo cíclico e acrónico. A exemplo da “izirpela” ou da conhecida oração a Santa Bárbara contra as trovoadas, rituais são assim repetidos, fazendo, literalmente, acontecer de novo o instante primordial. O instante em que pela primeira vez se processou determinada cura, se exorcizou determinado mal. Ou, então, se delegou a respetiva competência. Afinal, os mitos revelam que o Mundo e o Homem têm uma origem sagrada, e mostram-nos como isso é importante como modelo e exemplo a ser seguido. Mais ainda, revelam que aquilo que o Homem pretende fazer já foi feito antes; logo que tal é possível e que os resultados são prováveis se se seguirem as regras prescritas. Poder-se-á dizer, então, que a cosmogonia mítica é, na tradição arcaica, o modelo exemplar de toda a espécie de fazer. Tal comparticipação não só torna o “mundo familiar e inteligível mas ainda, e igualmente, transparente”. 7 - Talhar e cortar Um dos mecanismos operacionais, mais usuais nestas práticas, em grande parte mágico-curativas é, aquilo a que se chama, “talhar” ou “cortar o mal”. Assenta, o mesmo na crença popular de que certos tipos de doenças (especialmente aquelas que se manifestam de forma epidérmica em seres humanos ou animais) resultam, em última instância, da ação de bichos venenosos (“peçonhentos”) que através de mordida, parasitação ou simples contágio, envenenam o indivíduo provocando-lhe ardor e afeções na pele. Animais que, mesmo tendo fugido para ignotas paragens, podem ser mortos (leia-se “talhados”) à distância, sob a forma de um ritual analógico. E sendo mortos, mesmo ritualmente, assim se mata o mal provocado. Afinal, como diz a sabedoria popular: “morre o bicho, morre a peçonha!” 8 - Apaziguar e encomendar Processos menos frequentes nas terapêuticas populares, casos há em que se desenvolvem atitudes de apaziguamento de entidades potencialmente nefastas (vistas como responsáveis voluntárias ou involuntárias) e encaradas como alguém não vulnerável a uma simples intimação verbal. Entidades, estas, objeto (muitas vezes) de processos concecionais de personalização. Algumas (como a lua) constituem, provavelmente, sobrevivências de ações ancestrais relacionadas com potestades pré-cristãs ligadas, especialmente, às energias cósmicas. Outras, como nas “sezões”, percebem-se, aí, eventuais persistências de entidades telúricas. 9 - Morte/renascimento Finalmente, um outro tipo ancestral de magia simpática é aquele que podemos entender como uma recriação ritual* da morte/renascimento. Não deixa de funcionar por analogia e semelhança (aqui, contudo, referentes ao tempo primordial) mas, neste caso, num contexto mítico especialmente simbólico. O novo nascimento faz morrer o homem velho e emergir o novo; supostamente imaculado e despojado de todos os males. Constitui, assim, mais que uma mera prática de cura: um anular regenerativo de todos os males e deficiências, originais ou entretanto adquiridos. O indivíduo renasce de novo imbuído, plenamente, da perfeição dos primórdios. No contexto terapêutico popular era comummente realizado com crianças (mais próximas ainda do momento de nascimento, que assim se repetia) mas abrangia, principalmente em tempos idos, igualmente os adultos sendo, aliás, usual em muitas religiões ancestrais. Persiste ainda, entre nós, em singulares práticas terapêuticas, cuja magia radica na intensa energia que se liberta da morte/criação de uma nova vida. Por isso, nalgumas doenças (como o “quebrado”), se passavam as crianças por entre um ramo de silvão, carvalho, vime ou videira, aberto, de um lado para o outro, por indivíduos que serviam de “padrinhos” (nalguns casos os próprios padrinhos) frequentemente possuindo nomes propiciatórios, enquanto se entoava uma cantilena apropriada. Em suma, de tudo isto (e não só) são feitas as componentes operativas dos rituais curativos: de gestos e ações que, com operacionalidades mágicas, se interligam em estreita simbiose e, procuram nas mais diversas substâncias que a natureza oferece, a marca de transcendentalidade capaz de provocar os efeitos desejados. Afinal, para o homem tradicional, o mundo era composto de uma infinita e multifacetada profusão de perigos (que o envolviam, inquietavam e, quantas vezes, aterrorizavam) não admirando que a multiplicidade de práticas terapêuticas apenas tivesse limite nos incomensuráveis limites da imaginação humana: fórmulas e rituais mágicos, esconjuros e exorcismos, ações físicas, anatómicas e alimentares, apelos e encomendações religiosas ou dirigidas às potências cósmicas ou naturais mais ou menos divinizadas. E, ainda, feitiços e contrafeitiços, apaziguamentos diversos, sacrifícios, recorrências a relíquias sagradas e utilização de substâncias naturais da mais diversificada natureza e aplicabilidade. Todos, exprimem um carácter empírico e utilitário, que se funda na natureza multivalente (e, às vezes, ambivalente) do sagrado e se traduz em estratégias de manipulação de energias mágicas (religiosas ou não) bem como numa variada aplicabilidade das substâncias naturais, também elas, afinal (nos tempos de recolha e utilização e nos processo rituais de aplicação) reveladoras de uma clara virtude metafisica.

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