A Esfinge de Bronze
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Espaço de comunicação que se espera interactivo, este é um instrumento que permite estar próximo de amigos,presentes e futuros, cujas contingências da vida tornam distantes mas nem por isso menos merecedores de estimas e afectos.
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sexta-feira, 4 de dezembro de 2020
Navegando nas vagas pandémicas do poder em Portugal
Afundados que estamos na malfadada pandemia, somos diariamente inundados por dados sobre a natureza, dimensão, configuração e particularidades da mesma, previsões e expetativas, numa profusão que, muitas vezes, induz inúmeras confusões e incongruências.
A decisão governamental de confinamento inicial de suporte policial e judicial, aditada (a seu tempo) de um apelo ponderado a valores éticos e ao sentido cívico dos cidadãos, (bem como, naturalmente, o temor da pandemia), levou ao enfrentar da primeira vaga de forma algo eficaz merecendo, até, diversos elogios.
Mas a necessidade de reanimar a sociedade e a economia levou, mais tarde, à inevitável abertura social, colocando, em grande parte, as condições de cumprimento das medidas impostas e aconselhadas, nas mãos da população. Assentes, agora, em pressupostos de livre arbítrio; de direitos individuais e deveres de cidadania.
E, aí, tudo se alterou. Para pior, já se vê.
O equívoco do Governo (para lá de decisões estratégicas sempre discutíveis e nunca absolutamente perfeitas), é semelhante ao que outros governos muito provavelmente teriam tido no seu lugar. O mesmo que todos os governos têm tido. O mesmo que a classe política portuguesa, afinal, tende a ter.
Esquecendo-nos (esquece muito a quem não sabe) que a população portuguesa possui uma idiossincrasia muito particular; que não a vocaciona, especialmente, para este tipo de situações. Desde logo para cumprir, voluntária e espontaneamente, regras que provenham de qualquer organismo estatal.
Não por qualquer atavismo cultural, esclareça-se.
Mas por um percurso histórico muito peculiar.
Ora, pode dizer-se que os nossos governantes, tendem a entender o povo português como alguém que, devidamente instrumentalizado, se comporta de uma forma prescrita e adequada aos, vistos como tal, interesses nacionais.
Esse é o primeiro erro; o de que as massas populares se comportam de forma absolutamente previsível e dirigida. A estratégia pandémica adotada para as Escolas constitui paradigma exemplar de tal.
O segundo, que a classe politica dispõe de conhecimentos que lhe permite condicionar tais atitudes e comportamentos*.
Mas existe ainda um terceiro (eventualmente mais importante), o de que a atitude da população face ao Poder/Estado/Governo/Autoridade, corresponde a uma relação de solidariedade ou, facilmente, convertida em tal.
De facto, ao contrário de muitos países da Europa, que tiveram quase mais dois séculos de coabitação com as ideias liberais e humanistas, Portugal ainda em 1974 constituía uma nação predominantemente rural; tendente para a auto suficiência de bens e serviços. E de valores, já agora.
A implementação de alterações significativas nas superestruturas vivenciais (feitas, entretanto, de melhorias habitacionais e educacionais, autoestradas, parques automóveis, novas tecnologias, superiores condições de vida e mais diversificados consumos, quase não deixam perceber o país que tínhamos.
Contudo, as infraestruturas mentais persistem, ainda, em grande parte!
Infraestruturas em que, nas vivências de subsistência na altura dominantes (diretamente no mundo rural e, indiretamente, nas populações suburbanas de afluência recente), as comunidades viam o Estado (em qualquer das suas vertentes; Governo, Municípios, Polícias, Tribunais, Finanças) como algo a evitar todo o custo; do qual não se esperava nada de bom!
E hoje, passados 46 anos do 25 de Abril, tal permanece ainda, em grande parte.
Por isso não cumprimos as mais diversas leis, se a isso pudermos fugir. E ajudamos, convicta e voluntariamente, outros a fazê-lo.
Por isso, não denunciamos transgressões (como é nossa obrigação) a não ser que, com isso, estejamos a ser lesados. Seja nas autoestradas, seja nos impostos da mais variada natureza. Não admira, assim, que a denúncia de tal comportamento seja, ainda hoje, denominado de “bufar”; vernáculo para imoralidade e carácter sinuoso e vingativo.
Por isso a nossa relação com as autoridades se transforma, frequentemente, num jogo do gato e do rato.
Por isso, ainda, apoiamos sempre os políticos e afins acusados de corrupção pelo Estado. E os brindamos, até, com reforços eleitorais.
Por isso, também, as razões para os tais agravamentos verificados após o desconfinamento; independentemente da natureza das respetivas vagas.
Até porque, o aligeirar das medidas iria sempre, como foi, criando a sensação de que o pior estava passado. E o temeroso tendeu, portanto, a diluir-se.
E, com o decorrer do tempo, fomo-nos habituando a lidar, mentalmente, com milhares de infetados diários e várias dezenas de mortes.
Na verdade, habituamo-nos a tudo. Principalmente, se nos der jeito!
Aliás, tudo isso tem a ver, desde logo, com a maneira como os nossos políticos valorizam, usualmente, as diversas áreas do conhecimento. Suponho que, para estes, as ciências sociais só servem para instrumentalizar discursos e indumentárias, poses e atitudes públicas e eleitoralistas.
Levando-os, muitas vezes, pela deficiência de perceções contextuais sociais e culturais, a tomar medidas sem aplicabilidade prática e incorrer em erros de palmatória.
E porquê, perguntar-se-á, os partidos políticos portugueses apresentam tal défice de compreensão de fenómenos sociais que, afinal, os deviam enquadrar? Pois, afinal, respeitam à população que somos, no espaço que temos e no tempo que vivemos.
Em primeiro lugar, porque os cientistas sociais raramente ocupam lugares de relevo político. A não ser os omnipresentes advogados; não por acaso especialistas em instrumentalizar a verdade.
Em segundo, porque a vivência de poder (seja na Administração Central, seja na Local) é feita de tal maneira de fidelidades caninas (não confundir com pequeninas) que o Chefe (não tão infalível como o Papa mas, lá perto) age e reage conforme quer e lhe apetece e, eventuais aconselhamentos, acabam afinal por ser, em grande parte, concomitantes com a vontade do mesmo.
Divergir pode custar o lugar que tanto custou a alcançar (que não esqueçamos é de “confiança politica” e não técnica) já que o simples questionar ou discordar põe em causa a clarividência toda poderosa do Chefe. E, pode ser visto, como escondendo tenebrosas intenções.
As “vozes do dono” são, assim, as normas padrão no interior das organizações politicas nacionais e outras que tais.
Mais visíveis operativamente nas Administração Local (pela frequência e dimensão) mas existentes, afinal, em todos os níveis da hierarquia do poder.
Percebe-se, porquê, o Governo quis abrir as Escolas. País de economia frágil, com um dívida externa obscena, já profundamente afetado pela situação pandémica dos últimos meses, precisa como de pão para a boca do reatar da atividade social e económica.
Mesmo que para isso tenha de sacrificar os professores (exteriores, estes, à badalada estratégia das “bolhas”); muitos deles, pela idade e saúde, constantes dos famigerados grupos de risco.
Mas o que também não há dúvida, é que fossem quais fossem as medidas a implementar, seriam sempre polémicas e criticáveis. E de eficácia limitada e controversa.
A não ser que se criasse um estado policial dentro de cada escola; a ecoar tenebrosas lembranças. Que, não haja dúvidas, é alternativa bem pior que o famigerado vírus.
E, tal como nas Escolas, também na Sociedade em geral.
Nos últimos tempos o Governo vem revelando algum desnorte que espero, sinceramente, venha a ser passageiro.
Más opções informativas, bem como dividir o país em concelhos de variada gravidade e hierarquização alterável, aos quais estão adstritas regras diversificadas, particularmente mutáveis no tempo e no espaço, constituem elementos geradores de dispensáveis confusões.
Particularmente interessante é ver, contudo, as diversas forças da oposição esforçando-se por encontrar argumentos que justifiquem estratégias diferentes e sustentáveis como consequências de más opções ou deficientes aplicações.
Afinal, se as medidas não resultam (como se pretende) e se a culpa não pode ser das pessoas a quem se dirigem, só pode ser de quem as tomou.
O povo, donde vem afinal a legitimidade da nossa situação de político de carreira, é que não pode ser culpabilizado. Pelo menos em público, já se vê|
Surgem, no entanto, grupos radicais de parca e esconsa responsabilidade, que veem na crise uma oportunidade fácil e despudorada de ganhar popularidade defendendo, clara ou implicitamente, uma maior autonomia comportamental, mesmo que implicando um inevitável agravamento epidémico. Vulgarizando, de alguma forma, um sinistro senso comum, que entende que as mortes, em certas condições qualitativas e quantitativas, são perfeitamente aceitáveis.
Afinal. este é um vírus de natureza algo perversa.
Desde logo porque afeta especialmente aqueles, já de si mais vulneráveis.
Tendendo a revestir a ação de muitos governantes de uma, mesmo que disfarçada, menorização social (com consequências diversas) e uma atitude de um certo laxismo, face a um fenómeno que, afinal, “liberta” a nação de alguns encargos sociais presentes e futuros. Espécie de depuração social, pela filtragem de elementos vistos como improdutivos, num sociedade que endeusa a produção e o lucro.
A sobrelotação dos hospitais tem feito, inclusive, admitir a hipótese de chegar-se a uma situação extrema em que as hipóteses avaliáveis de cura sirvam de seleção e opção de tratamento.
Mais chocante será, ainda, a aplicação neste caso, mesmo que disfarçado, de um critério paralelo predominantemente etário.
Na verdade, a colocação da vacinação dos mais idosos como última prioridade, no que concerne ao Plano de Vacinação preconizado pela Direção Geral de Saúde (e pesem embora pretensas justificações) parece, de facto, apontar para aí.
Porém, se chegarmos ao ponto de equacionar o valor da vida (das vidas, dir-se-á) face a, vistos como tal, superiores interesses económicos (e nestes optar por indivíduos mais ou menos empresarialmente produtivos) teremos perdido, em grande parte, a nossa indispensável dimensão humanista.
E nesse caso, se calhar mereceremos, mesmo, o que nos está a acontecer.
*Talvez resida precisamente aqui a culpa maior da nossa Classe Politica. A de, durante o tempo que medeia de Abril de 1974 aos nossos dias ( e já lá vai quase meio século), não ter conseguido, como seria sua obrigação, alterar de forma significativa a imagem que o nosso Povo tem do Poder. Uma imagem algo fora do tempo, com certeza, que se intrinca em conceções de valor tradicionais (naturalmente), mas que a classe governante, por atos de corrupção e afins, tem levado a que continue a ser vista como natural senso comum..
O Fandango e a Unesco
A Entidade Regional de Turismo do Alentejo e (parte do) Ribatejo revelou, há algum tempo, no Cartaxo, a propósito da Candidatura do “Montado de sobro” a Património da Humanidade que, o “Fandango”, viria a ser, igualmente, candidato a esse estatuto.
Passados quase três anos de suposto esquecimento, o mesmo dá agora, novamente, mostras de reanimação.
Resta saber como é que o Fandango vai preencher o requisito que a UNESCO exige: o de se tratar, obrigatoriamente, de um padrão cultural vivo.
Requisito que, como se sabe, o Fandango deixou de cumprir há largas décadas. Bem largas, por sinal!
Portanto, para vender o mesmo como uma tradição vida e atuante (e não como a representação etnográfica que os diversos grupos, ditos folclóricos, veiculam) obriga, necessariamente, à realização de ações supostamente espontâneas mas que, de espontâneas, só poderão, mesmo, ter o nome.
Contudo, confesso que não me repugna assim tanto a utilização de tais subterfúgios mesmo que, naturalmente, me recuse a tomar parte em algo que, mesmo que bem intencionado (admitamos), constitui, sempre, uma fraude.
Afinal, estamos num país em que a moral é cada vez menos um imperativo de orientação e, mais, um irritante obstáculo a tornear.
E não é a primeira vez (mesmo em Portugal) que tal acontece (veja-se o exemplo do “Cante alentejano”) e, calculo, não seja a última.
Tendo ainda em conta que, tal reconhecimento, mesmo que obtido por métodos tortuosos, arrasta sempre um potencial promocional não desprezível.
Mas, ao menos, que se aproveite para estudar o Fandango de forma a ultrapassar os variados equívocos que o impregnam, que hoje estão identificados e analisados mas continuam, em muitos casos, a plasmar as representações (ditas folclóricas) realizadas nesta Região.
- Por exemplo, que o Fandango não é uma dança; mas sim um tipo de danças!
Como acontece com qualquer dança ribatejana, ou não, proliferam as variantes de fandangos por todo o Ribatejo,.. por todo o país!
- Que à semelhança de outras danças, igualmente vistas como regionais, o Fandango não é uma dança estritamente ribatejana! Como os “viras” não são só minhotos, os “corridinhos” não são só algarvios, os “bailaricos” não são só saloios, as "saias" não são só norte-alentejanas!
Existem fandangos em diversas regiões, principalmente na Estremadura e no Minho, mas ainda nas Beiras e até no Alentejo e nos Açores. Existem, a jusante, inúmeros fandangos em Espanha. A montante, diversos no Brasil.
- Que o Fandango não é, como se poderia julgar, uma dança em que o canto esteja, necessariamente, ausente!
À semelhança do que era comum nos teatros lisboetas de setecentos, muitas versões eram, normalmente, cantadas. Não só no Ribatejo (onde, embora não dominantes, surgem, ainda, algumas versões cantadas) mas, tanto quanto se sabe ainda, na Estremadura e nas Beiras, e igualmente, como modelo usual, em terras minhotas. Também no Brasil e em Espanha tal situação era frequente.
- Que o Fandango no Ribatejo não era só dançado por homens, mas indiferenciadamente por homens e/ou mulheres. Isto tanto no Bairro onde (embora relutantemente) se foi há mais tempo aceitando, como na Charneca ou na Lezíria. Como acontecia no Vale de Santarém, em Torres Novas, nos Riachos, no Pego e nas Mouriscas de Abrantes, no Cartaxo, na Glória do Ribatejo, em Benavente, na Golegã, na Moita, em Alcanhões, etc,...
- Finalmente, que o Fandango não era, como hoje se julga e representa, uma dança de movimentos rígidos, invariáveis, quase hieráticos. Mas, pelo contrário, uma dança cujas variações se expressavam, essencialmente, a nível coreográfico.
Coreografias feitas de passes criativos e personalizados, imagem de marca de cada fandanguista e dependentes, em última instância, da criatividade, dinâmica e resistência física daqueles.
Se isto ficar consagrado (e independentemente das vantagens promocionais envolvidas) terá, com certeza, valido a pena.
Se não, se contribuir para cristalizar tais equívocos (perpetuando uma memória errónea e falaciosa das nossas raízes culturais), então, mais valia estarem quietos!
quarta-feira, 25 de dezembro de 2019
O Síndrome de Polifemo
A delirante proposta do PAN, pretendendo proibir os provérbios populares que falem de animais, parece estar a fazer escola.
Confesso que sempre fui um defensor das causas dos animais.
Não, necessariamente, dos cãezinhos e gatinhos das Quintas da Marinha que, muitas vezes, pretendemos transformar em burlescos simulacros humanos.
Mas dos inúmeros animais, ditos domésticos, abandonados; numa sociedade que os gera mas não gera condições que lhes permitam uma sofrível qualidade de vida.
E dos não domésticos, que razões economicistas vão extinguindo por todo o mundo. Diretamente através de matanças (indiscriminadas ou não) ou, indiretamente, através da inexorável diminuição dos seus ecossistemas.
Bem como daqueles que, para exclusivo gozo, criamos como instrumentos do nosso entretenimento. Aos quais provocamos (de forma artística, esclareça-se), desnecessária dor e sofrimento; enquanto expressão das nossas mais perversas vaidades.
Ora, recebi recentemente, através das redes sociais, um estrato audiovisual que dava voz a três militantes espanholas que, entrevistadas a propósito, explicavam convictamente porque na sua quinta (ecológica, com certeza) mantinham separados galos e galinhas.
“Para evitar que os galos violem as galinhas!
Nem mais!
Fica assim demonstrado, nestes episódios bizarros de “violência doméstica”, que todas as populações de galináceos existentes neste Mundo (bem como das outras aves e de muitas outras espécies animais), são resultado, estrito, de sucessivas violações.
Desde o início dos tempos, presume-se.
Pelos vistos, tem sido um regabofe!
Bem, pelos menos pudemos agora, levantar um pouco o véu que envolve um dos maiores mistérios da criação: porque é que “os galos, cantam de galo!”
Julgávamos nós que era para anunciar o sol-nascente.
Santa ingenuidade!
Apressam-se, isso sim, mal nasce a alvorada, a proclamar aos quatro ventos as suas ignóbeis proezas sexuais.
Tarados!!
Então, já agora e calhando em conversa, quem defende o Louva a Deus macho, morto recorrentemente pela parceira (desde há algumas centenas de milhões de anos a esta parte), durante o amplexo frenético de reprodução?
Tenham lá paciência mas, nestas coisas, não pode haver filhos e enteados.
Enfim, dizia a propósito, enquanto comentário anexo, o meu amigo (professor e antropólogo) responsável pelo envio de tal preciosidade:
“Sem nos apercebermos, estamos a criar uma geração de idiotas”.
Não sei se poderemos, em rigor, falar de uma geração; é com certeza injusto para muitos.
Agora o que eu sei é que, no caso presente, reputá-los de “idiotas”, é ter os idiotas em boa conta!
Mais papistas...
A firme intenção da Federação Inglesa de Futebol castigar as manifestações de racismo é algo que, naturalmente, não podemos deixar de realçar e subscrever.
A ação que desenvolveu, há algum tempo, em conjunto com as autoridades, no combate à praga do holiganismo, constituiu exemplo de determinação e vontade que, hoje, serve de modelo para muitos.
Mas, como diz o povo, “tudo o que é demais empata a venda”. E a decisão de castigar Bernardo Silva, jogador português do Manchester City, surge como manifesto exagero que, ao contrário do que se quer fazer querer (e que, afinal, seria o seu papel), não ajuda nada a combater tais manifestações discriminatórias.
Castigar alguém que se limita a trocar piadas com um (pelos vistos) amigo do peito, feitas de humor e remoque é, convenhamos, ser bem “mais papista que o Papa”.
Aliás, eventuais recriminações apenas teriam sentido pelo facto de tal ter sido publicado numa rede social que, muitas vezes esquecemos, não se trata apenas de uma forma de conversar.
Uma qualquer repreensão já seria mais que suficiente. E constituiria uma decisão bem mais pedagógica.
Até para transmitir que, o que está em causa, não é (nem pode ser) apenas e principalmente aquilo que se diz.
Mas a forma como se diz. A razão porque se diz. A intenção com que se diz.
E não se venha com argumentos de que a intenção não é facilmente avaliada e mensurável.
Afinal, é o mesmo Futebol que possui leis de aplicação disciplinar em que os casos acontecidos durante os jogos são penalizados (logo são avaliados) de acordo com a intenção do jogador.
E isto, desde logo, no momento e no interior do campo; em condições que são tudo menos adequadas a apreciações ponderadas.
Num contexto, convenhamos, bem mais difícil de avaliar.
Temos hoje proibições a mais. Normas a mais. Leis reguladoras a mais.
A prova de que são exageradas é que as cumprimos cada vez menos.
Não estão, portanto, a desempenhar o papel para que foram criadas.
Talvez devêssemos investir menos em imperativos normativos e investir mais na educação da cidadania. Mesmo que os resultados previsíveis pudessem ser menos imediatos.
Tenham lá paciência, mas a luta contra o racismo não pode contribuir para o desaparecimento (por proibição ou cautela exagerada) das relações de amizade que se querem naturais e espontâneas e do imprescindível uso do humor e diversão entre pessoas de diferentes etnias. Sejam eles negros, brancos ou azuis às riscas!
Isso é o pior que poderemos fazer para uma sã e natural convivência multicultural.
É envenená-la! E, portanto, inviabilizá-la!
A Festa dos Tabuleiros e a Unesco
Assiste-se, cada vez mais, a candidaturas tendentes a obter o registo patrimonial da UNESCO, respeitantes a uma multiplicidade de ações, padrões e complexos culturais imateriais.
Pode até dizer-se, que o frenesim das candidaturas a Património Mundial ameaça desvalorizar, pela vulgaridade numérica, novas e velhas classificações.
Seja como for, um dos mais recentes propósitos nesse sentido, respeita à Festa dos Tabuleiros em Tomar.
A propósito da intenção, em curso, referente ao “Fandango ribatejano”, tive a oportunidade de tecer, recentemente, algumas considerações, salientando, entre outras coisas, a natureza fóssil desta dança como aliás de qualquer outra hoje integrante daquilo a que chamamos Folclore (na Região e no País) há várias décadas desaparecido como elemento cultural vivo.
Portanto, tal como no “Cante alentejano”, também o “Fandango”, a insistir-se na candidatura, vai, literal e obrigatoriamente, fazer de conta que está vivo.
Afinal, quando se trata de património imaterial sempre se pode, mais facilmente, fazer de conta. Bem mais difícil seria vender como atual um templo ou uma fortificação entretanto desparecida. Um conjunto geológico, entretanto arrasado. Um bosque de raras e preciosas espécies, entretanto transformado numa urbanização.
No contexto intangível criam-se, simplesmente, representações/reconstituições etnográficas e apresentam-se, as mesmas, nos processos de candidaturas, como ações espontâneas e regulares.
À boa maneira do desenrascanço português.
Contudo, a hoje denominada “Festa dos Tabuleiros” apresenta algumas e significativas diferenças.
Se é verdade que esta antiga Festa do Espírito Santo (hoje estilizada a partir do modelo “Império”) foi alvo, em meados do século XX, de um processo de fusão e concentração concelhia a partir de festividades em desaparecimento (dando origem uma grande festa municipal e municipalizada) e se é certo que neste processo de institucionalização se virão a perder, com o tempo, os últimos carateres devocionais, não deixa igualmente de ser verdade que os mesmos virão a ser substituídos por uma outra motivação agregadora, vinculadora de um semelhante sentimento de pertença.
Nem mais, nem menos que aquilo a que podemos chamar o sentido patrimonial. Algo que tornou, gradualmente, cada uma das atuais largas centenas de participantes, alguém que faz dessa participação a expressão mais cabal do orgulho de ser tomarense.
A semelhança do que acontece com algumas outras situações no nosso país, hoje igualmente mediatizadas (como os “caretos trasmontanos” ou a utilização do “traje tradicional pela mulher da Nazaré”) o que está aqui em causa, em última instância, é a forma como a comunidade, mesmo aquela dispersa espacialmente, se vê refletida aos olhos dos outros.
Sente a importância que os outros atribuem à sua Festa. À sua Terra.
E sentindo, se acha, naturalmente, valorizada.
Portanto, se a Festa perdeu o fator devocional que a manteve viva por séculos, encontrou outro tipo de suporte vivencial. Conferindo, assim, à iniciativa, contornos que ultrapassam a, à primeira vista considerada, reconstituição etnográfica.
E, hoje por hoje, mantendo de alguma forma, esta manifestação festiva, enquanto elemento determinante de identidade comunitária.
Até porque, mais que quaisquer outras festas populares, as festas espiritistas, pelas suas exigências de encargo e configuração, sempre acarretaram (para lá das respetivas confrarias) uma mais alargada estrutura organizacional, muitas vezes, até, municipal e corporativa.
Deste modo, as condições exigidas pela UNESCO, pese embora a natural e evidente diluição devocional*, parecem assim, numa perspetiva socio-antropológica, cabalmente preenchidas.
*Afinal, estas festividades tiveram de lidar no Continente com mais antigas, apegadas, telúricas e antropomorfas entidades divinas (ou divinizadas) como os santos ou a Virgem.
Com prejuízo evidente, a médio e longo prazo, para as mesmas.
quarta-feira, 26 de junho de 2019
Os Profºs
Dizia, há alguns anos atrás, o conhecido antropólogo e historiador espanhol Júlio Caro Baroja, numa entrevista ao Jornal Le Monde; “o paranormal [pelo menos o mais VIP e badalado], a ovnilogia e a queda de extraterrestres, não passam [dos mitos] das velhas bruxas encobertos por uma linguagem pretensamente científica”.
O mesmo se pode dizer, convenhamos, da astrologia, em termos do reconhecimento social e promoção mediática, bem como dos inúmeros médiuns (profs, assim chamados) de configuração exótica e múltiplas e pretensas capacidades, abarcando todas e mais algumas áreas da magia, feitiçaria, mediunidade, curandeirismo, astrologia e quejandos.
Com denominações (Profº Anu, Profº Toga, Profº Sábá, etc.,…) que remetem para culturas estranhas e distantes (quase sempre africanas) e reivindicam ignotos conhecimentos, daí oriundos e obtidos, depreende-se, em processos iniciáticos herméticos e misteriosos.
Tratam tudo!
Enganos e desenganos, amorosos ou não. Negócios e falências; milagrosamente revertidas. Doenças de todo o foro e mais algum; físicas ou metafisicas. Apegos e desapegos. Amarrações e adivinhações diversas.
Casamentos e descasamentos, se for caso disso.
A simples sorte ou o esconjuro do azar. Fidelidades e infidelidades. Fertilidades e infertilidades. Felicidade e enriquecimento; como condições plenas e absolutas.
São os novos magos! Substitutos dos “curandeiros” (ou mais precisamente “curandeiras”) de antigamente; tradicionais e populares.
Incorporando e reivindicando, agora, todas e mais algumas competências.
Afinal, uma espécie de tudo em um!
Próprios de uma sociedade abrangente e global.
Mas, nem por isso, menos crédula.
terça-feira, 25 de junho de 2019
O Fandango e a UNESCO
A Entidade Regional de Turismo do Alentejo e (parte do) Ribatejo revelou, há algum tempo, no Cartaxo, a propósito da Candidatura do “Montado de sobro” a Património da Humanidade que, o “Fandango”, viria a ser, igualmente, candidato a esse estatuto.
Passados quase três anos de suposto esquecimento, o mesmo dá agora, novamente, mostras de reanimação.
Resta saber como é que o Fandango vai preencher o requisito que a UNESCO exige: o de se tratar, obrigatoriamente, de um padrão cultural vivo.
Requisito que, como se sabe, o Fandango deixou de cumprir há largas décadas. Bem largas, por sinal!
Portanto, para vender o mesmo como uma tradição vida e atuante (e não como a representação etnográfica que os diversos grupos, ditos folclóricos, veiculam) obriga, necessariamente, à realização de ações supostamente espontâneas mas que, de espontâneas, só poderão, mesmo, ter o nome.
Contudo, confesso que não me repugna assim tanto a utilização de tais subterfúgios mesmo que, naturalmente, me recuse a tomar parte em algo que, mesmo que bem intencionado (admitamos), constitui, sempre, uma fraude.
Afinal, estamos num país em que a moral é cada vez menos um imperativo de orientação e, mais, um irritante obstáculo a tornear.
E não é a primeira vez (mesmo em Portugal) que tal acontece (veja-se o exemplo do “Cante alentejano”) e, calculo, não seja a última.
Tendo ainda em conta que, tal reconhecimento, mesmo que obtido por métodos tortuosos, arrasta sempre um potencial promocional não desprezível.
Mas, ao menos, que se aproveite para estudar o Fandango de forma a ultrapassar os variados equívocos que o impregnam, que hoje estão identificados e analisados mas continuam, em muitos casos, a plasmar as representações (ditas folclóricas) realizadas nesta Região.
- Por exemplo, que o Fandango não é uma dança; mas sim um tipo de danças!
Como acontece com qualquer dança ribatejana, ou não, proliferam as variantes de fandangos por todo o Ribatejo,.. por todo o país!
- Que à semelhança de outras danças, igualmente vistas como regionais, o Fandango não é uma dança estritamente ribatejana! Como os “viras” não são só minhotos, os “corridinhos” não são só algarvios, os “bailaricos” não são só saloios, as "saias" não são só norte-alentejanas!
Existem fandangos em diversas regiões, principalmente na Estremadura e no Minho, mas ainda nas Beiras e até no Alentejo e nos Açores. Existem, a jusante, inúmeros fandangos em Espanha. A montante, diversos no Brasil.
- Que o Fandango não é, como se poderia julgar, uma dança em que o canto esteja, necessariamente, ausente!
À semelhança do que era comum nos teatros lisboetas de setecentos, muitas versões eram, normalmente, cantadas. Não só no Ribatejo (onde, embora não dominantes, surgem, ainda, algumas versões cantadas) mas, tanto quanto se sabe ainda, na Estremadura e nas Beiras, e igualmente, como modelo usual, em terras minhotas. Também no Brasil e em Espanha tal situação era frequente.
- Que o Fandango no Ribatejo não era só dançado por homens, mas indiferenciadamente por homens e/ou mulheres. Isto tanto no Bairro onde (embora relutantemente) se foi há mais tempo aceitando, como na Charneca ou na Lezíria. Como acontecia no Vale de Santarém, em Torres Novas, nos Riachos, no Pego e nas Mouriscas de Abrantes, no Cartaxo, na Glória do Ribatejo, em Benavente, na Golegã, na Moita, em Alcanhões, etc,...
- Finalmente, que o Fandango não era, como hoje se julga e representa, uma dança de movimentos rígidos, invariáveis, quase hieráticos. Mas, pelo contrário, uma dança cujas variações se expressavam, essencialmente, a nível coreográfico.
Coreografias feitas de passes criativos e personalizados, imagem de marca de cada fandanguista e dependentes, em última instância, da criatividade, dinâmica e resistência física daqueles.
Se isto ficar consagrado (e independentemente das vantagens promocionais envolvidas) terá, com certeza, valido a pena.
Se não, se contribuir para cristalizar tais equívocos (perpetuando uma memória errónea e falaciosa das nossas raízes culturais), então, mais valia estarem quietos!
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