A Santa da Ladeira conseguiu ao longo dos anos uma sempre crescente adesão de gente. Os crentes vinham de todo o lado, até do estrangeiro, em peregrinação até à Meia Via para as celebrações mensais.
A sua história toda a gente a conhece – o fenómeno é nacional - mas por cá, parece que ninguém que acreditava nela. Como pode isto ser?
As gentes de Riachos, tão orgulhosas dos produtos da sua terra, nunca enalteceram o facto de Maria da Conceição Mendes Horta ser natural de Riachos, onde nasceu, cresceu, começou a divulgar o seu milagre e também a ser censurada.
Esta é uma das questões que o olhar antropológico de Aurélio Lopes tenta esclarecer sobre o fenómeno que ficou conhecido entre os crentes por Santa da Ladeira do Pinheiro. Outros trabalhos foram feitos anteriormente, mas o do investigador ribatejano focou o contexto social, a evolução religiosa ambivalente que o culto teve, o seu crescimento interno e a situação actual, já depois de institucionalizado “ortodoxo”.
O antropólogo ouviu dezenas de testemunhos na Meia Via, Riachos, Entroncamento e também de pessoas que eram devotas.
Independentemente das razões académicas que lhe estão subjacentes, o recente trabalho de Aurélio Lopes surge na sequência de um percurso de investigação na área da tradição e cultura popular, com particular foco na área da religiosidade popular.
Os dois anteriores estudos deste antropólogo foram, um sobre as aparições de Fátima e outro sobre as mudanças das práticas religiosas dos avieiros, incluído no projecto de candidatura da cultura avieira a património nacional.
A tese de doutoramento, a que a investigação se destina, estará concluída em meados de 2012, mas em inícios desse ano será publicada em livro uma versão reduzida.
“Mercado de religiões”
Durante muito tempo, este tipo de práticas esteve perfeitamente enclausurado entre a possibilidade de aceitação eclesiástica, que era rara, e o não reconhecimento ou ostracismo, como aconteceu na Asseiceira/Rio Maior ou em Vilar Chão/Trás-os-Montes, casos mais ou menos idênticos ao modelo de Fátima.
A Santa da Ladeira persistiu até uma altura em que, à semelhança do que está a acontecer no Escorial ou Palmar de Troya (aparições marianas em Espanha), existe já um “mercado religioso” em Portugal. Tempo em que o cristianismo já não é “a” religião, mas “uma” religião.
Essa foi a sua maior proeza!
Apesar de a religião católica ser a que possui maior número de crentes e possuir ainda um conjunto de privilégios, muitos deles com uma explicação histórica, a mudança e abertura religiosa permite que líderes carismáticos desta natureza, como a Maria da Conceição (que, provavelmente, noutras circunstâncias seriam tidos como loucos), possam (embora com dificuldade), rodeando-se de indivíduos com conhecimentos administrativos e políticos, criar elas próprias, as estruturas em que podem assentar novos cultos.
Constituem, assim, variantes mais ou menos próximas dos cultos existentes, algumas vezes cismáticos, flutuando entre a aprovação e rejeição de determinados sectores da Igreja, mas que permitem, algumas vezes, a sua sobrevivência. Foi o que aconteceu na Ladeira do Pinheiro.
Aliás, a parceria com as igrejas ortodoxas nunca teria acontecido se não fosse o 25 de Abril.
Sozinha conseguiria?
A área do sagrado é essencialmente feminina. Normalmente são mulheres muito simples, suficientemente simples para acreditarem em coisas impossíveis. Impossíveis em termos transcendentais e impossíveis em termos organizacionais.
Portanto, porque acreditam em impossíveis, algumas vezes tornam possíveis, os improváveis.
Quando ela começou a desenvolver uma série de acções taumatúrgicas - e deixamos de lado até que ponto é que ela acreditava ou não - se alguém dissesse que daí a 50 anos iria haver, ali, um santuário com uma grande catedral, ninguém acreditaria.
Para isto acontecer foi preciso reunirem-se um conjunto de circunstâncias. Uma pessoa mesmo que seja analfabeta, como era o caso, e pobre, não tem nada a perder. São pessoas que acreditam que Deus escolhe os mais simples e ingénuos para comunicar. São pessoas que possuem, frequentemente, um carisma e forte personalidade, como ela tinha. Capazes de arranjar um grupo que lideram, motivam e fazem avançar em determinada direcção.
Estas pessoas são quase sempre convictas daquilo que fazem.
Como é, uma pessoa acredita numa coisa destas?
As pessoas acreditam sempre num desígnio mais elevado, e outros aspectos podem levar a isso.
As pessoas acreditam neste e “noutro” mundo. E acreditam que entre este e o “outro” há como que um canal, que algumas pessoas, tempos e situações podem abrir.
A relação com o divino torna-se, assim, quotidiana. Ela falava, tu cá tu lá, com os santos, com Deus, com a Virgem.
Isto acontece com a maior parte deste tipo de fenómenos. As pessoas, muitas delas relacionadas com uma religião respeitável mas anquilosada (cuja relação com o divino é feita através dos sacerdotes e mesmo assim de uma forma não visível), de repente vêem-se em ligação directa com os deuses. Isto é muito atractivo para pessoas mais zelosas (digamos assim), visionárias, muito carentes de afeição e capacidade de se imporem. Acredito que ela sentia que era mais capaz que outros, alguém que tem capacidades que noutros contextos poderiam dar origem a outro tipo de resultados. Aqui deu resultados a um nível que atraiu sectores da população muito crentes, místicos, pessoas que andam normalmente à procura obsessivamente do divino, seja através de espiritismo, das possessões populares, seja através de vidências, misticismos ou de outro tipo de situações.
Caíram ali todos criando uma feira de necessidades e originalidades.
Maria da Conceição teve assim capacidade para gerir todo um conjunto de interesses que foram aqui confluir: estamos em relação com o divino, esta pessoa é o canal da relação, o mundo está numa situação difícil e tenderá a acabar se não fizermos alguma coisa e, é através dela, que vamos salvar o mundo!
Este tipo de interpretação é mais ou menos inevitável em situações deste tipo.
A criação de organismos como o “exército branco”, que dão dignidade e solenidade e a atracção dos padres que dão respeitabilidade e institucionalidade, constituem mecanismos de formalização e acreditação cultual.
Aproximação à igreja católica e depois ortodoxa.
Maria da Conceição preferiu sempre o culto católico e até 1977, deu centenas de mensagens nesse sentido. Apelos à vinda de padres, dirigidos ao Bispo de Santarém, ao Cardeal Patriarca e naturalmente aos sacerdotes, por exemplo. Sempre quis um reconhecimento por parte da Igreja mas não o conseguiu, por razões óbvias.
Aliás, nunca conseguiria com o método e estratégia traçados por ela. A Igreja não aceita, normalmente, imposições. Mesmo aqueles cultos que, em determinadas alturas, foram considerados adequados e deu jeito a sua aceitação acabaram por ser disciplinados e domesticados, como Fátima.
Concorrência a Fátima?
A própria igreja católica tinha consciência disso. A determinada altura, o bispo de Leiria fez sair um postulado onde se dirige aos peregrinos de Fátima e a quem organiza excursões, para não virem à Ladeira do Pinheiro. Até diziam que quem viesse à Ladeira do Pinheiro não valia a pena ir a Fátima!
Rivalizou com Fátima e vivia um pouco à sua custa. A Maria da Conceição percebeu que Fátima só trazia vantagens e os discursos divinos pela boca dela passaram a incluir os temas fatimitas que estavam na ordem do dia e passaram a apresentar a Ladeira como uma continuação de Fátima. Mas a Igreja é uma instituição universal e não cede facilmente. Esta questão, aliás (tanto quanto se percebe dos dados disponíveis, nunca se pôs) e ela foi-se apercebendo disso.
Afinal, os representantes de qualquer religião (católica ou não) reservam-se o direito de avaliar os acontecimentos e definir a sua validade ou invalidade, de acordo com os cânones e, não só. Para as igrejas apenas existem, assim, duas situações: ou a pessoa é uma verdadeira santa ou é uma fraude, podendo ser voluntária e propositada (o que é mais grave), ou uma pessoa ingénua e iludida, exacerbadamente crente, que acredita naquilo que lhe está a acontecer.
Ainda antes da sua morte, em 2003, a igreja ortodoxa desvinculou-se.
Em 1977, um grupo de padres ortodoxos, regressados no 25 de Abril, agrupados na recém-fundada Igreja Católica Ortodoxa Portuguesa e liderados por D. João Gabriel, aceitaram os fenómenos da Ladeira.
Desde aí a ortodoxia entrou no culto e os cultos ortodoxos e católicos coexistiram durante mais de duas décadas. Segundo um padre ortodoxo que esteve ligado a esse processo ela aceitou porque não era aceite pela Igreja católica e porque acreditou que ali era possível criar um centro ecuménico onde todas as igrejas confluíssem. Por isso fazia todo o sentido a parceria com a igreja ortodoxa e as outras que se seguiriam. Mesmo pequenas igrejas, até católicas de outras confissões, quase sem representatividade, acabaram por lá ir celebrar, o que veio a criar uma certa ilusão de ecumenismo.
Mas ela sempre quis manter o culto cristão. A maioria esmagadora das pessoas que a rodeavam eram, naturalmente, cristãos romanos.
Durante esse tempo, a Maria da Conceição construiu uma igreja, logo à entrada. Depois, criou a catedral ortodoxa, mas onde exigiu um altar cristão católico, e mais tarde, entre 2000 e 2002, construiu outra igreja só para o culto católico. Depois de morrer, o altar na catedral foi retirado. A igreja católica está encerrada.
Houve, assim, um processo de ortodoxização completa do culto, que parece nunca ter sido intenção de Maria da Conceição.
Daí existir alguma conflitualidade de quem esteve ao lado dela e de quem está à frente da Fundação. De quem a vê numa lógica essencialmente institucional e de legalização do culto, e de outros que a vêem, ainda, numa lógica de voluntarismo e de relação pessoal com a considerada santa.
Após a saída, em conflito, da Igreja Católica Ortodoxa em 2003, a Ladeira ficará ligada a uma igreja ortodoxa búlgara, que só foi legalizada em Portugal em 2004, um ano depois da morte de Maria da Conceição. Esta, a Igreja Ortodoxa Alternativa Búlgara (de que Estevão da Costa é Bispo Metropolita de Portugal e Espanha), foi criada depois da queda do muro de Berlim após um conjunto de acusações, feitas ao Cardeal Primaz da Bulgária, de ter pactuado com os comunistas.
Virem para aqui, foi como espetar uma lança em África: ganharam audiência e um espaço de culto, num país onde a Igreja Católica é omnipresente.
Situação actual
A afluência baixou muito. Há pouco tempo contei quatro ou cinco autocarros e algumas dezenas de carros, embora já tenha estado presente após o ritual principal. Têm cultos diários e no primeiro domingo de cada mês a grande celebração mensal. Os dias da aliança, sete vezes por ano, têm a ver com dias importantes do culto, como a data em que foi destruída a casa de Maria da Conceição, ou datas do calendário religioso como a sexta-feira Santa.
Presentes diversos padres ortodoxos, mulheres do Exército Branco, e algumas pessoas devotas da Maria da Conceição.
Alguns não assistem ao culto por ser ortodoxo. É sintomático ver que parte daquela gente se posiciona preferencialmente perto da igreja da entrada, que está fechada.
A pacificação está ainda por fazer. Existem casos onde este tipo de conflitualidade está exacerbada.
Contudo, tal era, de alguma forma, inevitável. Depois do desaparecimento da mentora do culto, era óbvio que quem viesse atrás iria institucionalizar. Foi esta igreja ortodoxa que o fez, como poderia ser outra.
Quem conheceu e teve uma relação directa com Maria da Conceição, quem desempenhava papéis importantes lá dentro, foi posto de lado, assim como a sua sucessora indigitada, a “Teresinha”. uma das crianças que ela criou.
Prevendo o futuro, escolheu-a para sucessora, fazendo questão que isso fosse avalizado por Deus. A “Teresinha” manteve-se lá entre 2003 e 2009, altura em que, segundo diversos devotos, foi expulsa do santuário.
Por conseguinte, não só deixou de haver um culto católico, como deixou de haver uma personagem que simbolizasse esse culto. Logo as pessoas que estavam ligadas ao mesmo sentiram-se órfãs.
Os peregrinos são hoje menos.
A única dúvida que persiste, é até que ponto quantitativamente isso aconteceu e teríamos de saber como evoluiu a afluência das pessoas.
Sabe-se que aconteceu e porque aconteceu. É um processo que já vem de trás; com a retirada do altar católico e com a expulsão da “Teresinha”, a afluência de peregrinos diminuiu radicalmente.
Mas a grande alteração deu-se, naturalmente, com a morte da santa.
A igreja ortodoxa lida hoje com uma ambivalente necessidade: não darem azo a um maior afastamento das pessoas, mas igualmente não perderem o controlo do culto.
Alguns peregrinos continuam a vir: uns por habituação, outros por não terem para onde ir, outros porque se converteram, outros porque consideram a igreja católica e ortodoxa mais ou menos a mesma coisa.
Afinal, os responsáveis, agora, só têm que ir incrementando lentamente a ortodoxização daquele local de culto, pois Portugal, hoje, possui já um apreciável número de ortodoxos; muitos dos emigrantes que vieram do Leste.
Santos ao pé de casa não fazem milagres
Maria Conceição era de Riachos e dificilmente seria vista como santa em Riachos ou na Meia Via. As outras terras em volta estão igualmente muito próximas para gerar uma considerável afluência de pessoas. Mas das localidades que não têm relação directa de conhecimento com a família já é possível atrair mais seguidores.
Se repararmos, nunca são das terras onde as pessoas nascem que surgem os movimentos que os elevam à santidade. Não é por acaso que os padres das paróquias onde existem aparições são sempre contra, á semelhança de Fátima, La Salette, Lourdes, etc.
É muito difícil considerarmos uma pessoa conhecida como santa, pois sabemos de quem é filha, os seus defeitos e suas limitações. É muito difícil!
Embora em termos argumentativos seja fácil explicar, para nós como seres humanos, é muito difícil aceitar isso. Daí o povo ter perpetuado o dito que “os santos de ao pé da casa não fazem milagres”.
É natural que as pessoas da Meia Via tendam a ignorar aquilo. A pessoa nem é de lá, não a conhecem suficientemente para lhe apontar o dedo, mas também não a valorizam e até a ignoram.
Já as pessoas de Riachos que a conheceram têm normalmente uma reacção mais activa, do género irem lá para dizer mal, como aconteceu diversas vezes.
Este tipo de situações têm assim a ver com uma relação de proximidade comunitária com o sujeito. Quando temos uma relação de proximidade com o mesmo, dificilmente conseguimos perceber as singularidades e potencialidades que os outros vêem nele. Para o bem e para o mal.
Não é por acaso que grande parte dos devotos vinham de Santarém, Setúbal, Lisboa, Trofa, Rio Maior, etc. sítios onde existiram “milagres”, ou melhor, pessoas que tinham doenças e terão ficado curadas.
É mais comum haver este tipo de relação com pessoas que a conheceram, já, como líder religiosa, como figura carismática, como mística, do que com aqueles que a conheceram como criança.
As pessoas continuam a acreditar?
Ou acreditam ou não, não há meio-termo. Nunca se acredita mais ou menos.
Costumo dizer que existem três crenças que são gradualmente irracionais: a crença política, a crença religiosa e a crença desportiva/futebolística. Percorrendo as mesmas verifica-se um grau crescente de irracionalidade. Já somos um pouco irracionais na política, no caso das religiões é mais evidente e no futebol ainda mais.
As pessoas mudam de partido, dificilmente mudam de religião, mas nunca mudam de clube.
A grande maioria das pessoas que acreditava nos fenómenos místicos aí acontecidos, continua a ter a mesma ideia da Maria da Conceição.
Mesmo que hoje reajam mal ao que está a acontecer, não a consideram culpada. Pelo contrário, têm até uma crença messiânica de que ela há-de voltar um dia!
O próprio culto tem laivos de sebastianismo. Não só personagens bíblicas como Elias e Enoch são feitos regressar aí, como há alturas em que é dito que D. Sebastião vem ajudar a Ladeira, que é extremamente curioso.
As pessoas que acreditavam que ela é santa vão continuar a acreditar, e tendem a acreditar que se as coisas não estão melhor a culpa é da igreja católica que não apoiou, ou da igreja ortodoxa que estará a apropria-se daquilo e a deformar o culto.
A culpa nunca será, é, da Maria da Conceição.
Já quem nunca acreditou, continua a não acreditar.
Neste caso, na melhor das hipóteses, relevam a sua preocupação social, a preocupação com os lares, a aceitação das crianças, esse tipo de coisas. Muitos relevam isso, mesmo quando acham (e isso é mais ou menos comum), que ela era uma pessoa com feitio difícil… era uma patinha negra, que era alguém que nem acreditava naquilo que dizia.
E ela? Acreditava?
Tenho muitas dúvidas que uma pessoa consiga fazer tudo aquilo sem acreditar, e quem lida com estas áreas sabe como, afinal, é fácil acreditar: tanto para o místico ou vidente, como para o seguidor.
Dou um exemplo: na entrevista com Maria da Conceição ao jornal O Riachense em 1978, verificam-se alguns testemunhos de pessoas acerca de milagres acontecidos na Ladeira. Por exemplo, sobre um grupo de “anjos” que, num determinado dia, se viram aí voando. Um deles diz, a propósito, que olhou para o céu mas apenas viu um bando de patos a voar, embora acreditasse que fossem anjos!
É sintomático. As pessoas querem acreditar: ali como em Fátima e noutros lados. Ora, quando queremos acreditar nalguma coisa, acreditamos.
Portanto, só acredita nesses milagres quem é crente e (e isto é extremamente importante), quem é crente, quer acreditar.
Não ver, não indica, assim, que o milagre seja inexistente, mas apenas que o indivíduo não é suficientemente crente, devoto, puro!
Podem-se ver coisas diferentes, como em Fátima. Uma pessoa olha para o céu e vê o céu a rodar, outros vêem a cara de Nossa Senhora, outros o Menino Jesus, um cálice, etc,.… cada um vê aquilo que o seu sentir interior concebe e deseja ver.
Curas milagrosas?
A questão das curas milagrosas perspassa todo este tipo de fenómenos. Fátima, Escorial, Vilar Chão, Lourdes, Asseiceira, há sempre curas milagrosas.
As curas milagrosas acontecem quando uma pessoa tem uma doença que se considera definitiva. Para isto acontecer basta a mesma acreditar que a doença é aquilo que não é. Não existe referência médica em como Maria da Conceição tinha leucemia, mas isso não é importante. O importante era ela acreditar que tinha leucemia, o importante é que as pessoas acreditavam que ela tinha e que se curou.
E essa cura é sempre milagrosa. É um indício e um sintoma de sacralidade, a partir do qual aparecem os outros prodígios.
Na crença popular a medicina popular está sempre ligada ao transcendental, por isso existem as mezinhas e as práticas oratórias. Qualquer pessoa que é crente e tem uma doença e depois aparece curada (ou supostamente curada) torna-se, ela própria, condição de sacralidade e essas pessoas tendem a tornar-se mártires, místicas, chefes de seitas e em última instância, santas!
Versão integral da reportagem publicada no Jornal O Riachense de 19 de Maio de 2011.
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Espaço de comunicação que se espera interactivo, este é um instrumento que permite estar próximo de amigos,presentes e futuros, cujas contingências da vida tornam distantes mas nem por isso menos merecedores de estimas e afectos.
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quinta-feira, 19 de maio de 2011
Sagrado… mas pouco
Estamos no mês de Maio. Desde as calendas do mesmo, as estradas enchem-se de peregrinos, quais bandos de melíferas abelhas, pintalgando de amarelo e negro os percursos processionais que afluem a Fátima.
Percursos hoje apoiados por todo o tipo de enquadramento assistencial, conjugando, como em simbiose, a devoção fatimita, o obrigatório pagamento de promessas, as caminhadas de manutenção e, a cada vez mais necessária, convivencialidade social.
Nada em contrário. Afinal, o sagrado e o profano constituem o verso e o reverso de uma mesma moeda, na ambivalência que os atributos de transcendentalidade têm para cada um de nós. A sua relação foi sempre íntima, a linha de separação fluida e difusa.
Contudo, vivemos hoje numa sociedade em grande parte hipócrita e mercantilista, perdida que está, de algum modo, num espaço de transição entre valores comunitários e tradicionais em desaparecimento e valores modernos (de cidadania, dir-se-á) ainda escassos e de incipiente importância. E estes aspectos reflectem-se, naturalmente, nas nossas relações com a esfera do divino.
Na verdade, para lá daqueles (eventualmente a maioria) que procuram aqui, quantas vezes dolorosamente, a remissão por graças recebidas ou buscam num percurso sacrificial a sua contribuição para um universal e sempre insuficiente desagravo divino, outros há que pretendem saciar, apenas, um pouco exigente apaziguamento moral, vindo muitas vezes a optar por fórmulas imaginativas de limitação da sacrificialidade a níveis quase irrisórios.
Não falo já da inqualificável estratégia de pagar a outros para fazer a peregrinação por nós, situações que, a seu nível, lembram as vendas das indulgências do período mais negro da história da Igreja.
Falo, sim, daqueles, bem mais numerosos, que se limitam a transferir os seus usuais e saudáveis circuitos de manutenção física diários ou semanais para as estradas que levam a Fátima e, finda a etapa, regressam confortavelmente de automóvel a casa onde os espera uma farta refeição (sim, que o esforço abre o apetite) e um sono reparador.
E no dia seguinte ou, até, na semana seguinte, percorrerão mais uns quilómetros a partir do ponto onde tinham chegado! E, por aí adiante!
É esta uma estratégia cada vez mais usual. À medida dos chico-espertos que somos!
Na realidade, pode-se mesmo classificar, a mesma, como fraude. Consciente, ou não, cada um o dirá! Afinal, o intimismo da promessa não nos permite saber em que condições as mesmas são assumidas.
Agora, o que é particularmente estranho, é o devoto pagar a promessa daquela maneira ligeira e mistificadora e continuar a achar-se merecedor de uma retribuição divina sob a forma de recompensas que, quantas vezes, constituem determinantes reparações e alívios dos seus mais desesperados medos e inquietações.
É que, em última instância, qualquer pagamento de promessas exige uma equitatividade entre aquilo que se recebe e aquilo se está disposto a dar.
Mesmo que implícita. Mesmo que vista na óptica, naturalmente, do suplicante.
Não obstante, equitatividade. E, neste caso, sob a forma de um sacrifício.
E então, das duas uma, ou os tais suplicantes, têm hoje uma ideia menorizada da validade taumatúrgica das respectivas divindades ou atribuem uma excessiva valorização ao incómodo a que se dão neste enviesado percurso sacrificial.
É que se o acto de pagamento, mais que um sacrifício, se assemelha a prazer, então dificilmente estamos a cumprir aquilo que, é suposto, termos prometido. Estamos, simplesmente, a fazer de conta!
E se tivermos em consideração que as promessas são feitas a alguém (a determinadas entidades mais ou menos divinas), então não só estamos a fazer de conta como estamos a enganar as mesmas! A enganarmo-nos, pelo menos!
É a tal história da letra da lei e do espírito da lei! Lembram-se?
É este, aliás, um fenómeno preocupante! Não só pelo que é, mas essencialmente por aquilo que, de forma mais abrangente, nos revela: uma clara degradação moral nas relações entre os Homens, que se reflecte, assim, nas relações dos Homens com Deus.
Se não fosse tão grave poder-se-ia dizer que se tratava, de alguma maneira, de uma singular e inesperada consequência conjuntural da versão Pinóquio do Engenheiro Sócrates!
Se não fosse, estruturalmente, tão grave!
Percursos hoje apoiados por todo o tipo de enquadramento assistencial, conjugando, como em simbiose, a devoção fatimita, o obrigatório pagamento de promessas, as caminhadas de manutenção e, a cada vez mais necessária, convivencialidade social.
Nada em contrário. Afinal, o sagrado e o profano constituem o verso e o reverso de uma mesma moeda, na ambivalência que os atributos de transcendentalidade têm para cada um de nós. A sua relação foi sempre íntima, a linha de separação fluida e difusa.
Contudo, vivemos hoje numa sociedade em grande parte hipócrita e mercantilista, perdida que está, de algum modo, num espaço de transição entre valores comunitários e tradicionais em desaparecimento e valores modernos (de cidadania, dir-se-á) ainda escassos e de incipiente importância. E estes aspectos reflectem-se, naturalmente, nas nossas relações com a esfera do divino.
Na verdade, para lá daqueles (eventualmente a maioria) que procuram aqui, quantas vezes dolorosamente, a remissão por graças recebidas ou buscam num percurso sacrificial a sua contribuição para um universal e sempre insuficiente desagravo divino, outros há que pretendem saciar, apenas, um pouco exigente apaziguamento moral, vindo muitas vezes a optar por fórmulas imaginativas de limitação da sacrificialidade a níveis quase irrisórios.
Não falo já da inqualificável estratégia de pagar a outros para fazer a peregrinação por nós, situações que, a seu nível, lembram as vendas das indulgências do período mais negro da história da Igreja.
Falo, sim, daqueles, bem mais numerosos, que se limitam a transferir os seus usuais e saudáveis circuitos de manutenção física diários ou semanais para as estradas que levam a Fátima e, finda a etapa, regressam confortavelmente de automóvel a casa onde os espera uma farta refeição (sim, que o esforço abre o apetite) e um sono reparador.
E no dia seguinte ou, até, na semana seguinte, percorrerão mais uns quilómetros a partir do ponto onde tinham chegado! E, por aí adiante!
É esta uma estratégia cada vez mais usual. À medida dos chico-espertos que somos!
Na realidade, pode-se mesmo classificar, a mesma, como fraude. Consciente, ou não, cada um o dirá! Afinal, o intimismo da promessa não nos permite saber em que condições as mesmas são assumidas.
Agora, o que é particularmente estranho, é o devoto pagar a promessa daquela maneira ligeira e mistificadora e continuar a achar-se merecedor de uma retribuição divina sob a forma de recompensas que, quantas vezes, constituem determinantes reparações e alívios dos seus mais desesperados medos e inquietações.
É que, em última instância, qualquer pagamento de promessas exige uma equitatividade entre aquilo que se recebe e aquilo se está disposto a dar.
Mesmo que implícita. Mesmo que vista na óptica, naturalmente, do suplicante.
Não obstante, equitatividade. E, neste caso, sob a forma de um sacrifício.
E então, das duas uma, ou os tais suplicantes, têm hoje uma ideia menorizada da validade taumatúrgica das respectivas divindades ou atribuem uma excessiva valorização ao incómodo a que se dão neste enviesado percurso sacrificial.
É que se o acto de pagamento, mais que um sacrifício, se assemelha a prazer, então dificilmente estamos a cumprir aquilo que, é suposto, termos prometido. Estamos, simplesmente, a fazer de conta!
E se tivermos em consideração que as promessas são feitas a alguém (a determinadas entidades mais ou menos divinas), então não só estamos a fazer de conta como estamos a enganar as mesmas! A enganarmo-nos, pelo menos!
É a tal história da letra da lei e do espírito da lei! Lembram-se?
É este, aliás, um fenómeno preocupante! Não só pelo que é, mas essencialmente por aquilo que, de forma mais abrangente, nos revela: uma clara degradação moral nas relações entre os Homens, que se reflecte, assim, nas relações dos Homens com Deus.
Se não fosse tão grave poder-se-ia dizer que se tratava, de alguma maneira, de uma singular e inesperada consequência conjuntural da versão Pinóquio do Engenheiro Sócrates!
Se não fosse, estruturalmente, tão grave!
A crise da liberdade
Viveram as gerações portuguesas menos jovens, décadas que pareceram intermináveis de um regime autoritário que remia pela prisão e tortura os anseios libertários de uma população reprimida e anestesiada.
A Revolução de Abril permitirá substitui-lo por um sistema de livre expressão em que a assumpção da diferença deixa de ser encarada como crime, heresia ou subversão.
Foi uma importante mudança. Mas que, só por si, não garantiu (como não garante) uma plena vivência de liberdade, só alcançável em sociedades em que os imperativos de cidadania não necessitam de ser coercivos, mas se assumem, sim, como prática natural, voluntária e quotidiana.
O que entre nós, convenhamos, ainda não acontece!
Afinal, todas as sociedades são organizadas numa lógica de poder.
E se é verdade que o poder tende a corromper, ainda o é mais que, corruptor ou não, o que ele acarreta, inevitavelmente, é a criação de mecanismos que o tendem a promover e perpetuar.
Nas sociedades ditas marxistas tal aspecto transformou as assim chamadas ditaduras do proletariado em ditaduras em nome do proletariado.
Nas sociedades ditas democráticas, o mesmo adquiriu contornos mais diáfanos e subtis (imperceptíveis para muitos) mas nem, por isso, menos eficazes.
Um primeiro-ministro autoritário tem-nos mostrado que tais condicionantes de acção e opinião podem, facilmente, adquirir uma dimensão de estado. Os exemplos, na última meia-dúzia de anos, têm sido particularmente esclarecedores.
A crise económica e política que vivemos tem contribuído, ainda mais, para desenvolver tais restrições.
Num país em que as instâncias de poder se apresentam como concentracionárias e o poder administrativo funciona numa lógica piramidal e corporativa, a livre expressão de ideias e opiniões, supostamente predominante nas sociedades democráticas, torna-se cada vez mais problemática.
A dependência dos respectivos poderes (ciosos do seu estatuto e dos seus privilégios) se sempre foi substancial, torna-se hoje anda maior, muitas vezes preponderante e, a supostamente natural livre expressão de ideias e opiniões, transforma-se num risco potencial.
Quantas vezes, por entre recorrentes profissões de fé na liberdade e democracia, se utiliza o poder político e económico de uma forma abusiva, tornada determinante num país, cada vez mais, de escassos recursos.
A lógica zoroastriana que diz que “o bem é o que me beneficia e beneficia os meus interesses e o mal o que me prejudica e beneficia os meus inimigos”, continua, três milénios depois, perfeitamente actual!
E assim, fruto de um enviesado entendimento do uso e abuso das funções públicas (acicatado, ainda, pela conjuntural fragilidade económica) vamos, alegre e inconscientemente, hipotecando aquilo que, afinal, tanto custou a ganhar!
A Revolução de Abril permitirá substitui-lo por um sistema de livre expressão em que a assumpção da diferença deixa de ser encarada como crime, heresia ou subversão.
Foi uma importante mudança. Mas que, só por si, não garantiu (como não garante) uma plena vivência de liberdade, só alcançável em sociedades em que os imperativos de cidadania não necessitam de ser coercivos, mas se assumem, sim, como prática natural, voluntária e quotidiana.
O que entre nós, convenhamos, ainda não acontece!
Afinal, todas as sociedades são organizadas numa lógica de poder.
E se é verdade que o poder tende a corromper, ainda o é mais que, corruptor ou não, o que ele acarreta, inevitavelmente, é a criação de mecanismos que o tendem a promover e perpetuar.
Nas sociedades ditas marxistas tal aspecto transformou as assim chamadas ditaduras do proletariado em ditaduras em nome do proletariado.
Nas sociedades ditas democráticas, o mesmo adquiriu contornos mais diáfanos e subtis (imperceptíveis para muitos) mas nem, por isso, menos eficazes.
Um primeiro-ministro autoritário tem-nos mostrado que tais condicionantes de acção e opinião podem, facilmente, adquirir uma dimensão de estado. Os exemplos, na última meia-dúzia de anos, têm sido particularmente esclarecedores.
A crise económica e política que vivemos tem contribuído, ainda mais, para desenvolver tais restrições.
Num país em que as instâncias de poder se apresentam como concentracionárias e o poder administrativo funciona numa lógica piramidal e corporativa, a livre expressão de ideias e opiniões, supostamente predominante nas sociedades democráticas, torna-se cada vez mais problemática.
A dependência dos respectivos poderes (ciosos do seu estatuto e dos seus privilégios) se sempre foi substancial, torna-se hoje anda maior, muitas vezes preponderante e, a supostamente natural livre expressão de ideias e opiniões, transforma-se num risco potencial.
Quantas vezes, por entre recorrentes profissões de fé na liberdade e democracia, se utiliza o poder político e económico de uma forma abusiva, tornada determinante num país, cada vez mais, de escassos recursos.
A lógica zoroastriana que diz que “o bem é o que me beneficia e beneficia os meus interesses e o mal o que me prejudica e beneficia os meus inimigos”, continua, três milénios depois, perfeitamente actual!
E assim, fruto de um enviesado entendimento do uso e abuso das funções públicas (acicatado, ainda, pela conjuntural fragilidade económica) vamos, alegre e inconscientemente, hipotecando aquilo que, afinal, tanto custou a ganhar!
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