Se há algo que nos distingue dos outros animais é, como
se sabe, a nossa condição de “homo religiosus”; entenda-se, o homem dotado de
religião. O Homem capaz de conceber a dimensão do transcendental. E nela se implicar.
Portanto, não admira que para lá de conhecidos e
doutrinários propósitos, as organizações religiosas venham cumprindo, desde
sempre, importantes necessidades.
Explicam o mundo e tornam-no inteligível.
Orientam as ações quotidianas; ética e ritualmente.
Dão sentido ao sofrimento, visto (muitas vezes) como um
meio para alcançar um fim superior. Uma existência terrena, quantas vezes
difícil e dolorosa, face a uma recompensa no “outro mundo”; eterna e
bem-aventurada.
Revelam, ainda, a existência de uma entidade superior,
imortal e intemporal, frequentemente criadora do mundo. Paradigma modelar, mais
ou menos omnipotente. Protetora de crentes e devotos.
E, principalmente, fornecem um desígnio de vida.
Muitas vezes enquanto modelo soteriológico de salvação.
Que para lá de eventuais inspirações ou revelações
divinas, dão corpo à recorrente procura humana do incomensurável. A procura de
um significado existencial, para lá de um efémero e, facilmente visto como irrelevante,
percurso de vida.
Desígnio que tende para um absoluto primevo, visto como inevitável
e inquestionável.
Absoluto, cuja interpretação vivencial,
contudo, pode ser encarada de maneira diversa por cada crente.
Aliás, enquanto desígnio de
procura de uma adequada vivencialidade o crente é alguém que, solidário ou solitário, oscila entre a
plena inserção social e o mais absoluto recolhimento.
Isolando-se como opção ascética
para se afastar das tentações mais ou menos mundanas. Procurando na
interiorização refletiva ou meditativa perceber melhor a vontade de Deus ou deste
se aproximar.
Afinal, o isolamento torna o
asceta alguém socialmente afastado das tentações de um mundo pouco propenso à
gestão das coisas divinas. Não obstante, afasta-o do mundo real.
Eventualmente mais perto de Deus
mas, com certeza, mais longe dos Homens.
Ou, pelo contrário, vive uma
existência social de acordo com aquilo que é doutrinariamente visto como uma vivência
adequada, justa.
Salvar a nossa alma através de
uma vida piedosa e, influenciar os outros, pela força do exemplo. Mesmo que
vivendo num doloroso “vale de lágrimas” ou num mundo de infiéis ou de fiéis,
pouco praticantes.
Exercendo, neste mundo, as
valências piedosas que exprimem uma teologia de salvação.
Ou então, ainda, fazer da vida
terrena um combate perpétuo pela conversão dos infiéis; convencendo-os ou
coagindo-os. Dando, deste modo, um novo sentido à expressão “vida ao serviço de
Deus”. Potenciando-se, assim, as probabilidades de salvar os outros.
Opções que exprimem militâncias
diversas face a soteriológicos desígnios; nossos e alheios.
Seja como for, promovendo (de
uma forma ou de outra) o alargamento do rebanho divino e a difusão da palavra
de Deus, o paradigma desígnio existencial é encarado como condição de salvação
eterna.
Aliás, a pertença a uma organização desta natureza,
enquadrada ideologicamente, que confere uma razão de ser a uma vida nem sempre
facilmente justificável, plasma a mesma de especial significado, face a uma
realidade mais elevada; enquanto desígnio absoluto e intemporal.
Por exemplo, partilhando com os nossos pares uma forma de
entender o mundo e a sua razão de ser, tendemos a olhar o outro como alguém que
não conseguiu (ainda não conseguiu, não pode ou não quer conseguir) perceber a dimensão
transcendental que o envolve, mas que distrações diversas e tentações várias tornam
opaca e indiscernível.
O crente adota, então, um caráter
de missão: divulgando uma visão do mundo metafísica e soteriológica (às vezes
escatológica), oferecendo-se, quantas vezes ostensivamente, como mediador na
necessária (ou vista como tal) interpretação mais ou menos hermenêutica da
palavra de Deus.
Afinal, ele é o crente
esclarecido (de alguma forma um profeta e emissário de Deus) face a um mundo de
potenciais crentes não esclarecidos. Ou de crentes, mal esclarecidos.
É um facto que, principalmente num mundo não global, o
desconhecimento doutrinário, por parte de indivíduos portadores de outras
matrizes culturais e cultuais, era algo que deveria (só por si) justificar a
sua natural condição não crente.
Deveria. Mas normalmente não
justifica.
Daí os mais ou menos “justificados” genocídios. E as
inúmeras conversões forçadas. E as, muitas vezes sequentes, execuções heréticas
ou pagãs.
Daí a importância da missionarização. Quantas vezes,
historicamente, catalisadora de projetos coloniais. E vice-versa.
Hoje, contudo, cada um pode optar, cada vez mais, pela
teologia que mais o seduz.
Cada vez mais, supostamente, em liberdade.
E, é suposto ainda, em consciência.
Num mercado, algumas vezes
bastante mercantilista:
Situação que, nos novos cultos
(que lidam com o prodigioso enquanto instrumento quotidiano de conversão e comoção)
e não possuem a estabilidade teológica e pastoral que o tempo acarreta, adquire,
como se sabe, contornos paradigmaticamente exacerbados.
Afinal, o absoluto plasma todas
estas ideias; resultantes de uma revelação naturalmente divina e da sua
interpretação, mediada ou não, de contornos inspirados.
Absoluto; simultaneamente total e acabado.
Absolutamente único e verdadeiro. Eterno e interminável
Necessário à assunção do
sagrado (pelo menos enquanto enquadramento doutrinário), torna-se, assim, não
apenas um fator de arreigadas convicções e certezas mas, igualmente, o móbil
fomentador das ações necessárias às, vistas como inevitáveis, consubstanciações
das mesmas.
Absoluto, susceptível de condicionar o crente e levá-lo
até a relativizar as condições materiais da existência, sacrificando-as à
ambicionada e beatífica recompensa divina que, acredita, o espera.
As consequências destas perspetivas, vividas em contextos
socioculturais e políticos diferenciados, enformam assim, de uma forma ou
doutra, a visão do mundo do crente.
E afetam, naturalmente, as suas opções de consciência.
E até a consciência maior ou menor que tem dessas opções.
Como relativizar, então, o absoluto, quando a sua
conceção em grande parte interdita outros absolutos? Que tendem a ser vistos
como falsas ou diabolizadas inverdades.
Cuja universalização tende, hoje, a reduzir à sua
verdadeira dimensão planetária; sistemas religiosos nacionais ou civilizacionais
vistos anteriormente como panteístas.
E as universalidades cósmicas se reinterpretam em
reconvertíveis contextos míticos primordiais.
E, já agora, em que perspetivas ecuménicas tendem a
entender, de alguma forma, as divindades, como expressões histórico-culturais
de uma semelhante dimensão do sagrado.
Afinal, passado um tempo em que
as organizações religiosas mantiveram um carácter étnico original (fruto de uma
história e percursos socioculturais específicos), a religiosidade moderna tende
agora para perspectivas universais tendentes a aproximar os paradigmas
teológicos e doutrinários, sem pôr em causa o carácter existencial das mesmas.
Qual a influência destas novas condições?
Poder-se-á dizer, numa primeira análise, que fé e
liberdade de consciência (vista, esta, como liberdade de sentir e perceber)
constituem desideratos pouco compatíveis.
Pois, sejam quais forem as “nuances” interpretativas, a
mesma pressupõe uma crença determinada e tendencialmente determinante e não uma
dúvida libertária. Baseada no acreditar sem ver e, se for caso disso, até no
acreditar sem perceber.
Se necessário, contra todas as evidências.
A fé é, afinal, a condição necessária a que o crente percorra
o caminho soteriológico de salvação.
É assim uma via muito estreita (pese embora a
multivalência, muitas vezes até teológica, de muitos escritos sagrados) que não
deixa muito espaço a desvios e paralelismos doutrinários e comportamentais.
Até porque existe, sempre, uma orientadora interpretação
oficial canónica e inspirada.
Deste modo, para lá de um determinismo que o desígnio
soteriológico (e às vezes escatológico) acarreta, sobreleva ainda um caminho
feito de ideias e valores, ações e comportamentos que contraria, em grande
parte, uma qualquer opção liberatória.
Tratando-se de religiões reveladas, mais ou menos
interpretativas dos livros sagrados (leia-se utilizando em maior ou menor grau
interpretadores/mediadores mais ou menos institucionais), seja qual for a
configuração doutrinária e pastoral, sempre a soteriologia segue uma via de comportamento
vivencial exemplar: modelo paradigmático da vida das divindades ou profetas ou
das orientações divinas fornecidas.
Num contexto percepcional em que as ações e razões de Deus
nem sempre são fáceis de entender.
Mas serão estas condições impossibilitadoras em absoluto
da liberdade de opinião?
Será que Deus quer criar uma multidão de crentes acéfalos
e robotizados?
Qual o grau de liberdade que se permite face às
enquadradoras determinantes divinas?
E de que forma as condições atuais, num mundo cada vez
mais global, em que os próprios deuses tendem para dimensões sincréticas e
panteístas (cósmicas mesmo) concorrem para isso?
E já agora, de que maneira as mesmas são vistas como
ameaças a matrizes culturais tradicionais e religiosas que enformam formas de
vida que, ora, são vistas perigar?
Numa economia de mercado mundial que (como dissemos) não
deixa, afinal, de incluir as religiões.
Onde competem sistemas religiosos tradicionais e
dimensões mais ou menos planetárias e, igualmente, novas seitas; saídas do
frenesim dos novos sincretismos, das lideranças carismáticas dos mais diversos
profetas e místicos modernos e das teologias do marketing e do espetáculo.
Seja como for, o peso das configurações culturais é ainda
enorme. E continuará a ser.
Mas a relativização das diferenças já se iniciou.
Espera-se que a mesma traga, com ela, perspectivas mais
amplas e clarificadoras das matrizes essenciais, mesmo que revestidas de
roupagens etno-culturais diferenciadas.
Afinal, a salvação só se torna verdadeiramente meritória
se o crente puder optar, em liberdade de consciência, por um determinado
desígnio vivencial, face a outros; à sua disposição, pelos quais poderia, também,
ter optado.
Alguns, como Saint-Exupéry, afirmaram até que a única
liberdade era a do pensamento.
Não sei, em rigor, se será a única. Mas é, com certeza, a
primeira; aquela sem a qual, poder-se-á dizer, não existem as outras: matriz
catalisadora de eventuais formas de expressão e comportamento.
E, afinal, também a última; derradeiro refúgio quando
outros escasseiam.
Mas mesmo esta se encontra, hoje, ameaçada por duas
práticas concomitantes:
- O “pensamento único” (claro) que a tradição consagra e
o sagrado muitas vezes enforma, castrador da tal liberdade de expressão. E
naturalmente, da expressão dessa liberdade.
- E o mais atual “não-pensamento” que uma paisagem
mediática cada vez mais influente nos induz. Feita de “fait-divers” e de supostos
fluxos de informação que mais não são que disfarçadas (subliminares, quantas
vezes) formatações mentais, ao serviço dos grandes poderes contemporâneos.
Unívoca e acrítica.
Numa lógica inequívoca de rebanho.
Que, como dissemos, não deixa muito espaço (continua a
não deixar muito espaço, dir-se-á) à reflexão e imaginação criadora de cada um
de nós.
Na procura de um caminho que pode até não ser o melhor
face a um qualquer critério disponível.
Mas, apesar de o podermos sentir inacabado, é o nosso.
Fruto de uma reflexão tida (tanto quanto é possível) por livre e responsável.
Não absoluto, claro. Susceptível de ser alterado pela mudança
das circunstâncias e da nossa interpretação das mesmas.
Mas que nos permite libertar da cândida e trágica inconsciência
em que, muitas vezes, vimos vivendo.
Independentemente de eventuais enquadramentos teológicos.
Ou, meramente ideológicos.