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O bispo da Diocese de Leiria/Fátima afirmou que a petição contra a visita do
papa à comemoração do centenário das aparições não lhe tira o sono.
Não conheço
a dificuldade do Bispo de Leiria para cair, quotidianamente, nos braços de
Morfeu. Mas acredito que, de qualquer maneira, não perca o sono por isso.
Aliás,
assumida como algo “contra”, esta é uma ação que provavelmente só favorecerá a
Igreja. E a fará desempenhar, mesmo que passivamente, o papel de vítima.
Suponho que não é isso que se pretende, mas… tenderá sempre a criar uma certa ideia de
intolerância.
- Mas, qual a sua
opinião sobre o referido manifesto?
Simplesmente,
a seguinte: qualquer pessoa tem o direito de ser crente: cristão, hindu,
muçulmano, confucionista ou afim.
Qualquer
crente tem o direito de acreditar num qualquer dogma, episódio taumatúrgico,
hagiológico ou pressuposto metafisico; doutrinário ou não.
E,
naturalmente, de assentar, aí, o seu foco devocional.
Qualquer
conjunto de crentes tem o direito de se organizar. De realizar os seus
cerimoniais. De convidar, quem quiser, a partilhar os mesmos.
Mais, ainda,
se for o seu líder institucional e espiritual.
- Mas, sendo este
um Papa que se tem apresentado como progressista não era de esperar que tivesse
outra postura?
Ser um papa
que vem caracterizando o seu pontificado por ideias bem menos conservadoras
(incidindo, afinal, em situações sociais que o liberalismo atual tornou
particularmente desfasadas do conservadorismo doutrinário cristão), não implica
que o mesmo possua qualquer posição diferente da “entourage” católica no que
respeita a Fátima.
Primeiro,
porque Fátima é hoje a grande vanguarda das ações pastorais (e não só) da
Igreja, corporizando, no culto da Senhora de Fátima, uma singular experiência
cultual universal.
Segundo
porque, tanto os fenómenos de Fátima como qualquer outro dogma católico,
assentam em pressupostos de consagração que se baseiam, quase estritamente, na
fé; sendo, naturalmente, exteriores a qualquer eventual necessidade de autenticação
científica.
Insuscetíveis,
assim, da sua validação. Logo, da sua invalidação.
Deste modo, as interpretações científicas, nesta área do
pensamento, não são partilhadas, (nem poderão ser), pelos cristãos; seja o mais
humilde dos crentes, seja o próprio sumo pontífice. Pouco sensíveis afinal (de
diferentes modos mas idênticas naturezas) a outras formas de entender a
realidade.
- Poder-se-á
dizer que se exige uma discussão pública dos milagres de Fátima?
Estudar
Fátima pode ter como resultado diversas conclusões naturalmente diferentes
daquelas que a Igreja partilha. Foi aliás o que (dir-se-ia, inevitavelmente)
aconteceu com o estudo que realizei “Videntes e confidentes; Um estudo sobre as
aparições de Fátima”.
Discutir os
testemunhos, razões, ambientes, condições políticas, implicações sociais e
psíquicas, enquadramentos culturais (e por aí adiante) podem e devem fazer-se.
E, aliás, têm-se feito pouco.
Não existem,
afinal, assuntos tabus.
Agora
discutir os “milagres”…
Poder-se-á até
dizer, em rigor, que os milagres não se discutem!
Face às
condições atrás citadas (ou outras) interpretam-se cientificamente ou
assumem-se intuitivamente como algo que está para lá (ou, se quisermos, para
cá) das análises metodológicas e científicas. Apenas isso!
Podemos até
ensaiar argumentos de uma e outra razão e sustentação. É sempre contudo, em
grande parte, uma conversa de surdos.
São outras
formas de perceção. Mais intuitivas, mais emocionais; às vezes psicossomáticas.
Não são
confrontáveis com as validações dos padrões culturais que a ciência estuda.
E vice-versa.
- Seja como for,
acha que a vinda deste Papa, hoje, a Fátima, se justifica?
É algo que
devemos perguntar aos católicos.
Por mim, não
vejo porque não. É o centenário daquilo que, para a Igreja é, hoje, o “grande
altar do mundo”. Por menos, já outros nos visitaram.
Agora, o que
eu acho, sim, é que não nos compete intrometer na vida de uma organização
religiosa (privada, esclareça-se) que, como é natural, assenta (como todas as
outras) os seus pressupostos doutrinários em acontecimentos (episódicos ou não)
interpretados taumaturgicamente e, naturalmente, suportados pela fé.
Na verdade,
as aparições de Fátima não são, em rigor, “imperativos de fé”; leia-se dogmas
essenciais de fé. Mas para muito boa gente, neste mundo, funcionam como tal.
E todos os
crentes católicos (como todos os outros; cristãos ou não) devem-nos merecer o
maior respeito.
É que a
nossa sociedade não funciona (em nenhuma dimensão, esclareça-se) apenas na
vertente científica. Muito longe disso.
É um facto
que, nela, a ciência vem adquirindo prestígio acumulado. Mas isso não impede
que a maioria esmagadora da população mundial se continue a assumir como
crente.
Desta e doutras religiões.
- Pode dizer-se
que Fátima é resultado de um logro orquestrado pela Igreja?
Suponho que
não! Pelo menos não foi essa a conclusão a que cheguei quando a estudei.
Acho que se
tratou, sim, do natural aproveitamento de um dos inúmeros fenómenos de visionação/alucinação
que surgem preferencialmente em épocas de grande dramatismo social e político
como aconteceu, precisamente, no início de novecentos, com a participação de
Portugal na Grande Guerra e com o conflito entre a Igreja e o Governo
Republicano.
Agora, mais
importante que isso, é perceber-se que (desde que canonizados) não existem
dogmas ou episódios transcendentais falsos em qualquer religião.
Por
definição, são todos verdadeiros. Porque são sagrados e, em última instância,
fruto da ação e vontade de Deus.
Isto na
perspetiva do crente; como não podia deixar de ser.
Dito de
outra maneira: mesmo que consideremos, um dado caso, como um embuste ou orquestração
(e independentemente das intenções manifestas e das consciências em presença) a
partir do momento em que o mesmo é aceite como sagrado/divino torna-se,
literalmente, verdadeiro.
E pode passar
a constituir-se como foco operativo devocional e divinatório.
Como uma
erupção do sagrado na teia social do profano. Uma hierofania; se não, uma
epifania divina.
Mais ainda:
sem citar exemplos para não ofender ninguém, é quase inevitável que os grandes
dogmas religiosos (desta, como de qualquer outra religião), assentem em
fundamentos bem mais frágeis, ainda, que os de Fátima!
Apenas são
mais antigos, estão já prestigiados pela tradição, integrados doutrinariamente
e adequados por uma hagiologia milenar.
Tornaram-se
verdades absolutas que enformam os nossos referenciais místicos e míticos e que
hoje não podemos e, em grande parte não queremos, questionar.
Afinal, a
possibilidade de os analisar de uma forma minimamente sistemática é agora, por
razões óbvias, praticamente nula.
Pois, deles não temos acesso aos documentos originais (nem
nada que se pareça) ao contrário do que, apesar de tudo, acontece com Fátima.
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Mas os subscritores do manifesto falam em enganar o povo?
Não gostaria de factualizar a questão
mas, o argumento de “engano do povo” pode, como dissemos, ser afeto a todos os
dogmas religiosos (considerados, esses sim, como imperativos de fé) desta ou de
outra qualquer religião.
A nossa
opinião sobre isso é naturalmente respeitável mas, é apenas isso; uma opinião.
E se o nosso
critério forem os imperativos da ciência, estes devem ser considerados como
“um” critério; não “o” critério.
Se “o”
fosse, então todos os fundamentos de qualquer religião considerada seriam,
inevitável e obrigatoriamente, postos em causa.
Mesmo que
não cristãos!
E, se
cristãos, mesmo que exteriores a Fátima.
A este nível
percepcional (volto repetir) as razões da ciência não são aplicáveis.
A não ser,
por exemplo, as razões das ciências sociais como a antropologia do sagrado ou a
sociologia das religiões. Mas, a estas, não compete fazer juízos de valor sobre
as sustentações doutrinárias mas, sim, conhecer os tempos e os modos das
construções e evoluções dos sistemas religiosos.
- Acha que persiste
um conflito entre a ciência e as religiões?
Já houve bem
mais. Persistirá sempre, claro. Mas hoje (no nosso país, esclareça-se) vivemos
numa sociedade, cujo senso-comum é claramente de tolerância; pelo menos como
pressuposto.
Como
cientista social defendo, naturalmente, um incremento crescente da ciência.
Mas,
igualmente, o direito de cada um acreditar naquilo que considera mais adequado.
Sem pressões, nem paternalismos. E, convenhamos, prefiro uma sociedade
multivalente a uma estritamente homogénea.
Afinal, as
religiões cumprem papéis sociais e psicossociais bastante importantes para
muitos.
E até porque,
podendo hoje a ciência, sustentar técnica e digitalmente, grande parte das
atividades humanas, nem sempre (como os últimos tempos têm mostrado), é
suficientemente dotada de um necessário e suficiente humanismo.
Diria mesmo mais;
tenho muitas dúvidas que um hipotético (e, naturalmente, improvável) desaparecimento
das religiões, gerasse uma sociedade melhor.
Tenderia, de
alguma forma, a constituir-se uma ditadura do pensamento científico. E
ditaduras, sejam elas quais forem, é algo que dispensamos.
- Se tivesse que deixar uma ideia final sobre este assunto, o que
diria?
Tentaria
resumir o aspeto essencial do mesmo, de forma o mais simples possível.
Considerando
que, se a defesa de um pressuposto dogmático (naturalmente não compatível com a
dúvida metódica e a racionalidade analítica associada) constituir um logro,
então toda a Igreja e todas as organizações religiosas (assentes que são nos
mais diversos dogmas, feitos doutrina ou não) terão de ser sujeitas à mesma
depreciação.
Contudo,
como já foi dito, a perspetiva analítica e metodológica constitui, apenas, uma
forma de ver o Mundo. Eventualmente mais avançada. Se quisermos, esclarecida.
Mas, com
certeza, não absoluta.
E não,
necessariamente, mais legítima e respeitável que a perspectiva de um qualquer
crente.
Afinal, nas
sociedades humanas, nem todo o saber assenta nas razões da razão.
Alguns
suportam-se em razões de inspiração, pressentimento e intuição. Vistas, facilmente,
como místicas e iluminadas.
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