António
Ceia da Silva, responsável pela Associação Regional de Turismo do Alentejo e (parte
do) Ribatejo, revelou há algum tempo atrás, no Cartaxo, estar em curso a
candidatura do fandango ribatejano a património mundial.
Na altura
escrevei um texto de opinião em que considerava que “a divisão do Ribatejo por
associações regionais de turismo (de que é, essencialmente, apêndice), recebe
como compensações, este tipo de rebuçados que servem para comprar consciências
e adormecer resistências; num processo administrativo de morte anunciada”.
Afinal, o
objetivo primeiro é candidatar o “montado de sobro” a património da humanidade
e, a candidatura do fandango, uma espécie de cenoura que se coloca à frente do
burro para que ele siga na direção pretendida.
São, como se
dizia aí, “as cenouras do nosso percurso muar”.
Falava-se
também, a talhe de foice, do modismo das candidaturas; afinal uma forma relativamente
fácil e eficaz de promover aspetos particulares da cultura tradicional.
Que, contudo,
pela sua recorrência, desvaloriza os reconhecimentos entretanto conseguidos ou a
conseguir. Afinal, este tipo de reconhecimentos só serão importantes se
escassos e difíceis de alcançar. Tal como os milagres; só são relevantes se forem
raros.
Seja como for
e no que respeita à dita Candidatura, dela, só por si, não virá, com certeza, grande
mal ao mundo.
Resta saber
como é que o fandango vai preencher o requisito que a UNESCO obrigatoriamente
exige: o do objeto de candidatura ter de ser um padrão cultural vivo.
De facto,
para que seja reconhecido como património mundial será assim necessário, (como, aliás, aconteceu com o cante alentejano)
criar aquilo a que podemos chamar um simulacro vivencial. Algo que se possa
vender como se de uma realidade ainda viva; mesmo que, algo moribunda, se trate.
Apesar do
objeto de candidatura ser, agora, uma dança, com todas as implicações
lúdico-sociais daí decorrentes. Suponho, assim, que conseguir convencer os
técnicos da UNESCO de que o Fandango é uma dança ainda hoje viva é, com
certeza, bem mais difícil.
Estou contudo
a imaginar, que se vão criar iniciativas diversas que ponham as pessoas a
dançar, nalguns casos sem indumentária tradicional, em ambientes reais e com
menos preocupações formais. Tudo devidamente filmado, fotografado e mostrado;
para UNESCO ver.
Contudo,
o fandango ribatejano1 está morto e enterrado (leia-se fossilizado) há, sei lá,
seis/sete décadas!
E,
não só não ressuscitou desde então, como não ressuscitará com o processo de
candidatura, tanto no pós como no durante.
Afinal
aquilo que os agrupamentos folclóricos hoje fazem é apresentá-lo (como aliás as
outras danças, cantigas, indumentárias e afins; do seu reportório), como
simples reconstituições; resultantes de formas, quase sempre prosaicas, de
pesquisa etnográfica. Dito de outra maneira; divulgam-no como simples referencial
lúdico de memória1.
Importante,
convenhamos, para a compreensão e difusão das nossas raízes culturais (pelo
menos parte delas) mas, apenas isso.
Recentemente
os patrocinadores da Candidatura propuseram ao Fórum Ribatejo o estabelecimento
de uma parceria que passe por integrar na dita, elementos do Fórum, com a área
relacionados.
Naturalmente
os estudos que publiquei, há alguns anos, como o meu amigo Bertino Martins “Fandango;
Raízes, disseminação e diversidade“, em 1992 e “Fandangos” em 2005, (afinal os únicos
alguma vez publicados sobre a matéria) levaram a que fosse, igualmente,
convidado.
Convite
que agradeço mas, declinei, por uma razão muito simples: a minha natureza de
investigador (se quisermos, académico) não é conciliável com a participação num
projeto (supostamente um estudo) em que o rigor científico será, como se disse,
inevitavelmente sacrificado, para que o resultado final possa ser embrulhado em
roupagens de faz de conta!
O
que é, como se sabe, uma subversão completa do pressuposto investigativo.
Esperemos,
pelo menos que a dita candidatura consiga ultrapassar a exagerada estilização
que enforma, ainda hoje, grande parte das respetivas representações ditas
folclóricas.
E
não constitua, afinal, a consagração (em memória futura) do erro e do equívoco!
Estilização,
esclareça-se da qual podemos equacionar cinco situações/padrão que, no seu
conjunto, fazem (em grande parte) da atual imagem pública desta dança, uma
completa mistificação que, o estereótipo, paulatinamente foi construindo.
Cinco
equívocos que (citando a obra “Fandangos”, atrás referida) “no seu conjunto,
têm moldado o senso comum contemporâneo construído em volta de uma
representação paradigmática do Fandango que, convenhamos, com as suas raízes
ancestrais possui hoje, apenas, circunstanciais semelhanças”.
E
quais são eles afinal?
-
Em primeiro lugar, que o Fandango não é uma dança mas, sim, um tipo de danças!
Como
acontece com qualquer dança ribatejana ou não, proliferam as variantes de
fandangos por todo o Ribatejo,... por todo o país!
Fandangos
dançados (noutros tempos) em roda, em par ou em quadra. A três por oito ou a
dois por quatro. Expressando competividades explícitas ou não. Cantados ou não.
Dançados individualmente, em pares ou em grupos. Com ou sem atributos de
complexização coreográfica. Nas tabernas ou nos bailes. Nos campos ou nas
“modas”.
-
Em segundo, que à semelhança de muitas outras danças, igualmente vistas como
regionais, o Fandango não é uma dança estritamente ribatejana! Como os viras
não são só minhotos, os corridinhos não são só algarvios, os “bailaricos” não
são só saloios, as "saias" não são só norte-alentejanas!
Existem
fandangos em diversas regiões, principalmente na Estremadura e no Minho mas, também,
nas Beiras, nas Ilhas e até no Alentejo. Existem, a jusante, inúmeros fandangos
em Espanha. A montante, diversos no Brasil.
-
Em terceiro, que o Fandango não é, como se poderia julgar, uma dança em que o
canto esteja, necessariamente, ausente!
À
semelhança do que era comum nos teatros lisboetas de setecentos (donde o mesmo proveio),
muitas versões eram, normalmente, cantadas. Não só no Ribatejo (onde, embora
não dominantes surgem, ainda, algumas versões) mas, tanto quanto se sabe ainda,
na Estremadura e nas Beiras, e igualmente, como modelo usual em terras
minhotas. Também no Brasil e em Espanha tal situação era/é frequente.
-
Em quarto, que o Fandango no Ribatejo não era só dançado por homens mas,
indiferenciadamente, por homens e/ou mulheres. Isto tanto no bairro onde
(embora relutantemente) se foi há mais tempo aceitando, como na charneca ou na lezíria2.
Como acontecia no Vale de Santarém, em Torres Novas, nos Riachos, no Pego de
Abrantes, no Cartaxo, na Glória do Ribatejo, em Benavente, na Moita, na
Azambuja, em Alcanhões, etc.,...
-
Em quinto (e talvez, hoje, o mais importante), que o Fandango não era, como
hoje se julga, uma dança de movimentos rígidos, invariáveis, quase hieráticos
mas, pelo contrário, uma dança cujas variações se expressavam, essencialmente,
a nível coreográfico.
Coreografias
feitas de passes criativos e personalizados, imagem de marca de cada
fandanguista e dependentes, em última instância, da criatividade, dinâmica e
resistência física daqueles.
Paradoxalmente,
a mais espontânea das danças ribatejanas, está hoje (em termos de
representação), transformada num modelo coreográfico que se caracteriza pela
hieratização quase absoluta. Sendo assim, curiosamente, a mais estereotipada.
E, adiante-se,
mal estereotipada.
A
tradicional sucessão de passos e contrapassos, que só tinha limite na
originalidade e criatividade de cada um (e constituía um elemento basilar do vetor
competitividade), é agora substituída por uma variante uniforme, cuja eficácia
reside nas variações melódicas que o acordeão cromático proporciona e na
rapidez da execução, obrigatoriamente breve e repetitiva mas, até por isso,
enérgica e vibrante.
Seja
como for, se a dita Candidatura aceitar, pelo menos, propor como candidato o fandango
ribatejano na sua natural diversidade e não apenas o conhecido estereótipo, o Fórum
Ribatejo tal como foi acordado, irá participar na mesma.
Para
isso ficarem “indigitados” o Nelson Ferrão, o Ludgero Mendes e o Daniel Café
que, embora cientes desta incongruência sentem, com certeza, que o seu
contributo pode vir a constituir uma significativa mais-valia.
Até,
porque na lógica algo perversa (mas usual), dos que “os fins justificam os
meios”; a candidatura pode vir a constituir (como é normal nestes casos) uma
oportunidade para divulgar e promover o fandango e, através dele, o Ribatejo.
Seja
este, ou não, reconhecido.
2
- Situação
que, por exemplo, não acontece com grande parte dos fandangos brasileiros
entretanto transformados em danças (muitas vezes rituais) ligadas, a festas
religiosas ainda existentes como as de São Gonçalo ou do Divino Espirito Santo.
Em que, inclusivamente, servem propósitos operativos de pagamentos de promessas
2
– Desde que naturalmente não fosse dançado nas tabernas. Que, como se sabe, as
mulheres não frequentavam.
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