De repente abrem-se as portas e o touro entra impetuoso na praça. Mas, a perspectiva de liberdade que o anima, rapidamente se esvai quando o mesmo se vê noutro recinto fechado em redor do qual uma multidão de humanos berra desenfreadamente.
Surpreso pelo coro ululante da multidão, o animal estanca.
Atento, olha depois em redor. Um homem envergando vestes berrantemente brilhantes, salta para o recinto. Nas suas mãos segura dois paus afiados com fitinhas multicores, cujo sinuoso bambolear não augura nada de bom.
Incomodado, o boi tenta desviar a atenção procurando uma possível saída que lhe tenha passado despercebida num primeiro olhar.
Nada! Uma cerca envolve todo o recinto. E o diabo do homem que continua a abanar os paus e se vai, gradual e perigosamente, aproximando.
Confuso e nervoso, o boi reage da única forma que pode e sabe: investe de forma a afastar o intruso.
Este responde, porém, com uma finta subtil que lhe permite cravar as duas pontas aceradas no cachaço do animal provocando neste uma imediata reacção de dor e, na multidão, uma não menos imediata explosão de alegria!
E a acção, cada vez mais dolorosa, sucede-se uma e outra vez!
O cachaço do touro está agora cravejado de lanças farpadas que bamboleiam conforme o andar e cujo peso contribui para alargar, ainda mais, as feridas já expostas.
O animal olha em redor surpreso. O seu pequeno cérebro esforça-se por alcançar o significado de tão bizarro e atroz comportamento.
O sangue escorre-lhe do dorso e, curiosamente, parece incendiar ainda mais o fervor entusiástico da populaça.
Após cada agressão, o homem refugia-se detrás de umas oportunas tábuas que o boi, louco de dor, escorneia em desespero.
Finalmente o martírio parece terminar. Abre-se como que um compasso de espera!
Novamente o janota da farpela cintilante salta para a arena. Transporta agora um pano vermelho vivo e um objecto afiado cujo brilho metálico fere os sensíveis olhos do animal.
O touro está cansado de investidas goradas. Castigado por feridas diversas e dolorosas. Mais uma vez tenta ignorar o intruso que se aproxima agitando, provocantemente, o tecido escarlate.
Mas, mais uma vez não pode! A sensação de perigo iminente desencadeia nova investida tentando apagar o famigerado brilho.
O homem, contudo, faz rodopiar o pano anulando as sucessivas arremetidas. Da multidão chovem aplausos. O animal dá agora mostras, inequívocas, de cansaço.
Um e outra vez o pano é agitado provocantemente à sua frente!
Desesperado investe novamente. Escorrega, …quase cai. Num esforço derradeiro insiste, ainda, tentando escornear o malfadado brilho que o persegue.
O homem roda elegantemente sacando, no último momento, o pano do seu alcance. Depois num acto encenado de desprezo pelo perigo, vira costas e dirige-se ao público, solicitando aplausos num caminhar bailado, qual “travesti” em boca de cena!
Braços erguidos em apoteótico estilo de vitória, rodopia mais uma vez como se de um herói épico se tratasse!
Chovem flores! A multidão, em paroxismo, delira!
O boi, esse, olha fixamente. Expectante, dir-se-ia.
A miopia dificulta-lhe ainda mais a percepção de tão singular comportamento: que diabo estarão eles a festejar, interroga-se?!
É um facto que os seres humanos nunca lhe pareceram criaturas merecedoras de grande confiança. Imprevisíveis, narcisistas, intolerantes. Existem contudo acções que, até mesmo nestes, parecem despropositadas!
Perplexo, abana a cabeça!
E se não fossem as dores dilacerantes que o assaltam, teria até, quem sabe, sorrido interiormente com o paradoxo de uma espécie aparentemente tão irracional e que, por estranho que pareça, reivindica para si o estatuto ímpar da inteligência!
Mal sabe ele, coitado, que os Homens se consideram o supra-suma da criação!
Que acreditam, até, que os deuses fizeram o Mundo apenas e só para seu gozo e desfrute e que tal só tem limite nos amplos limites da vaidade humana.
Que fracos deuses seriam!
Aurélio Lopes
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