*********************************************************************************************************************************************************************

Espaço de comunicação que se espera interactivo, este é um instrumento que permite estar próximo de amigos,presentes e futuros, cujas contingências da vida tornam distantes mas nem por isso menos merecedores de estimas e afectos.


**********************************************************************************************************************************************************************


domingo, 26 de dezembro de 2010

Moral, valores e comportamentos

A sociedade moderna vive um tempo de mudanças crescentes, em que poderemos talvez dizer que a única coisa que se mantém constante é, precisamente, a mudança. Mudança cada vez mais rápida, que as novas gerações aprenderam a encarar com naturalidade mas, os mais velhos, vêem, ainda hoje, com temor e inquietação.
Mudam maneiras de viver e maneiras de sentir. Substituem-se valores que a tradição fixara e se apresentavam, quase, como perenes. Substituem-se por outros, considerados mais adequados a uma realidade vivencial moderna, plasmada de globalidade e variabilidade.

As calendas da contemporaneidade que os inícios de novecentos consubstanciaram, permitiam encontrar ainda, num país à altura predominantemente rural, um corpo de valores éticos e morais, sustentados pela tradição, de contornos comunitários evidentes e uma conexão funcional com as empíricas e autonómicas vivências locais, na afirmação de um espaço geo-social, visto como o “axis mundus” de um cosmos em grande parte estranho e, portanto, pouco fiável.
Tempo que os grupos folclóricos, melhor ou pior, hoje difundem e dos quais preservam a memória de algumas componentes vivenciais, principalmente lúdicas.
Valores em que o respeito pelos mais idosos constituía imagem de marca, símbolos comunitários como a igreja ou o santo padroeiro elementos de identificação e de tutorização sacro-cultural e princípios morais como a honradez, a solidariedade familiar, o respeito pela palavra dada, a cooperação e a ascendência masculina, assentes em normas de direito consuetudinário, sustentavam seculares fórmulas de socialização local, intimamente ligadas ao irracionalismo místico e ao pragmatismo empírico e ruralista.
Valores que resultavam da consolidação de princípios, muitos deles milenares, adaptados às sucessivas condições do percurso civilizacional (em que culturas e religiões se sucedem no tempo) e adequados a funcionalidades sociais e económicas cuja mudança é, algumas vezes, ainda mais lenta.
Era o tempo em que a “palavra dada” era sagrada e selava acordos e negócios, por mais substanciais que fossem. Em que a palavra era uma “escritura”, e o respeito, pela mesma, condição incontornável de alguém fiável e respeitável.
Mas era igualmente o tempo da intolerância face à diferença. Do apertado controle que a coesão social permitia, a bisbilhotice comunitária e de vizinhança garantia, a família exercia e a Igreja se encarregava muitas vezes de justificar, moral e doutrinariamente.
Tempo de um apego, quase inquestionável, a um estilo de vida obrigatório, etapa interminável de uma existência que já tinha marcado inumeráveis gerações.

É que, diferentemente das danças ou cantigas, a moral persiste muitas vezes secularmente e, ao contrário delas, não se transmite fluentemente, como que por osmose, entre grupos sociais diferentes e mais ou menos contíguos.
Porque é intimista e individual e se funda na organização social comunitária. É algo milenar, fruto de princípios que emergem como perenes, adaptados que foram aos imperativos vivenciais.
Grandes mudanças culturais e civilizacionais (a implantação do cristianismo nos séculos IV/V ou o fim do sistema feudal em meados do segundo milénio) com as correspondentes mudanças de valores e de organização social, podem levar (e levaram) a importantes alterações éticas e morais que, no entanto demoraram décadas, senão séculos, a implantar-se.
Não é imutável (nada o é, afinal) mas persiste para lá das vicissitudes conjunturais que afectam as sociedades. A sua mudança é de tal maneira lenta que muitas vezes parece intemporal. Intemporalidade que apenas o doutrinário religioso, também ele conservador, diáfana e lentamente influencia.

Quanto à sua natureza, a moral comunitária é, por definição, local e operativa. Enquadra-se nas vivências tradicionais e fundamenta os seus valores nas funcionalidades do todo social e comunitário.
Aí, por exemplo, nem sempre matar corresponde a um crime, como acontece no actual direito jurídico! Pode corresponder, por exemplo, ao exercício justificável e justificado de um estimável acto de justiça popular!
Ao contrário da burguesia (em termos sincrónicos) e, principalmente, da aristocracia local (num contexto também diacrónico) a família não constitui, aqui, a determinante quase única de necessidades e motivações sociais.
A comunidade (conjunto de famílias extensas, ligadas de forma entrecruzada por laços de parentesco consanguíneo, de afinidade e relações de vizinhança) ocupando um território, reconhecendo-se num padroeiro e partilhando interesses e sentires comuns (entre os quais um intenso sentimento de pertença) ocupa, igualmente, um lugar preponderante
Por isso os valores, sendo especificamente locais e expressos num direito consuetudinário suportado na tradição, não deixam de ser, igualmente, conformes às funcionalidades das vivências comunitárias.
São sociedades de “nós” que se opõem aos “outros” que, nem sequer, são os “vós!”
São os “outros”, de outras terras, de outras aldeias (quiçá, das cidades), supostamente portadores de pressupostos morais não aconselháveis,

Mesmo os valores religiosos (onde a moral se enquadra doutrinariamente) pese embora as suas concepções universalistas, não deixavam, de forma substancial, de se exprimir pela sua adequação e conformidade à cultura local. A religião popular é vista, muitas vezes, como a “nossa”, por oposição “à dos padres” ou, no Ribatejo, que possui socialmente características hierárquicas particulares, a “nossa” que se opõe “à dos ricos”.
A religião tradicional era e é, assim, uma religião comunitária, fornecendo os princípios morais que consolidam e tornam coeso o corpo social. As divindades são xenófobas: defendendo a aldeia contra as outras aldeias, defendendo a nação contra as outras nações.
Deus está aí distante, de alguma forma inacessível, assumindo quase sempre contornos de referencial secundário.
Mais importante é, afinal, o padroeiro(a) (que pode ou não dar o nome à aldeia) estando sempre ligado à sua fundação mítica e presidindo do seu altar na igreja matriz (pela centralidade cósmica que a envolve ou a posição elevada que a avulta), a querelas e disputas, sortes e azares e concedendo graças anualmente repetidas.
A ele, ou ela, se agradecem as magnânimas concessões de fertilidade dos campos e dos gados, em cortejos processionais (que chegaram até hoje) em que jovens supostamente virgens, transportam as dádivas dos primeiros ou dos melhores frutos da terra, como oferendas rituais de agradecimento.

Um santo popular é, neste contexto, uma construção colectiva. Cada um tem dele uma interpretação pontualmente diferente mas, o todo social, cria do mesmo um entendimento padrão e comunitário. Entendimento que é diferente dos outros santos das outras aldeias, mesmo que correspondam à mesma entidade.
Na verdade, a religião popular rural e comunitária é especialmente iconográfica, prática, centrada nas imagens dos santos; enquanto representações físicas do metafísico e com o qual as pessoas estabelecem relações contratuais (vulgo promessas) individuais ou colectivas.
O foco do culto é a imagem e, a imagem, é o santo!
O santo é, aliás, mais ou menos santo, conforme o número daqueles que acreditam no seu poder e, inclusive, na sua preocupação com os mortais. É, assim, função da sua dimensão devocional: em quantidade e qualidade!
O “apego ao santo” é tão convicto como irracional. Uma forma de cumplicidade directa, desencadeada pela configuração mítica e reconhecida eficácia taumatúrgica

Este é o tempo em que a aldeia/freguesia constituía como que o centro do mundo. Ou, se quisermos, um centro do mundo. Um micro-cosmos autónomo e auto-suficiente (em bens e valores) em volta do qual pululava o desconhecido, e donde, esporadicamente, chegavam notícias ou personagens que representavam, de alguma forma, o longo braço de um longínquo poder político. De um poder estatal, durante séculos exterior às lógicas governativas comunitárias.
Era o governo, visto sempre como pronto afogar o povo em impostos, os tribunais cujos esquivos e onerosos meandros legais os tornavam suspeitos de conivência com os poderosos, as autoridades policiais cuja presença, incomum, era quase sempre, prenúncio de “más novas”.
Tudo isto, num mundo eivado, ainda, de contornos endogâmicos, assumidos por inércia, habituação e opção consciente pelo habitual e pelo conhecido, que as relações de vizinhança e teias comunitárias consubstanciavam.
Era o rapaz, filho de boas famílias, quantas vezes “vizinho d’ó pé da porta” como se diz na Beira Interior, ou “do poial da porta”, como se diz nos Açores. Conhecido como bom trabalhador, não “bebedolas”, respeitador; bom rapaz em suma!
Era a moça recatada, trabalhadora, honrada, boa dona de casa, filha de pais acima de qualquer suspeita e, se possível, que se “ajeitasse para a costura”.
Aqui, a comunidade, era a base dos pressupostos, tanto legais, como morais. E nem o facto de tais premissas assentarem apenas em estruturas mentais locais, as tornava menos eficazes e actuantes.
Comunidades em que os “conselhos de vizinhos” (de que hoje ainda subsistem resquícios) constituídos pelos chefes de família, se reuniam regularmente debaixo da árvore secular ou no centro da aldeia, normalmente junto à igreja, em conciliábulos que decidiam sobre os diversos assuntos de interesse comunitário. Inclusivamente morais.

O generalizar do estilo de vida urbano que os novos tempos ocasionaram, veio alterar radicalmente este estado de coisas. As famílias tornaram-se nucleares (e hoje muitas vezes monoparentais) no frenesim da instabilidade profissional e conjugal. As zonas sub-urbanas cresceram em amplexos hercúleos de bairros residenciais. As aldeias do interior, desertificaram-se em fluxos de emigração regional, nacional e internacional.
As concepções mentais comunitárias diluíram-se face à transitoriedade habitacional, às novas vivências socio-culturais e lúdicas e a funções laborais hoje pouco compatíveis com as condicionantes locais.

O desaparecimento destas comunidades está, inclusive, a levar ao desaparecimento dos cultos locais. De uma forma mais lenta, ao esbatimento dos cultos inter-comunitários que as romarias corporizavam.
E, concomitantemente, da moral comunitária que lhe era inerente.
Um novo tipo de âmbito cultual se está a implementar. O incremento do marianismo por diversas razões de universalismo e institucionalização, está a criar (por exemplo) cultos como o de Fátima (o mesmo se poderia dizer, com menor acuidade, de Lourdes ou das Senhoras de Guadalupe ou da Aparecida) em que as respectivas imagens que existem em muitas igrejas de Portugal ou no estrangeiro, constituem simples duplicados da imagem da Cova da Iria. Quanto muito, veículos mais próximos para chegar a ela.
Constituem simples réplicas e não como acontecia localmente (e acontece ainda com os santos e não só), entidades específicas, portadoras de particularidades cultuais e devocionais intrínsecas.
Porque o universalismo tornou o local de culto original universalmente conhecido e lhe conferiu uma dimensão focal que irradia para todo o mundo. Porque a institucionalização lhe confere uma configuração/padrão homogénea (pouco diferenciada) e a impulsiona como imagem iconográfica oficial da Senhora de Fátima.
E ainda (e, talvez, principalmente) porque a importância cultual do santuário de Fátima (hoje altar do mundo católico), tanto na abrangência como na intensidade, esvazia naturalmente outros focos fatimitas, como aliás, tem esvaziado outros centros peregrinacionais um pouco por todo o país: mais intensa e compreensivelmente no centro do mesmo.
É o universalismo moderno aplicado ao sagrado devocional.

A rotura que o 25 de Abril abriu na sociedade portuguesa do último quarto de novecentos, deu início a um processo de mudança sistemático e continuado, pondo em causa estruturas e valores seculares, corroendo morais ancestrais e introduzindo outras bem mais conformes aos imperativos de modernidade.
Mudança que outros países experimentaram bem mais cedo, e que, entre nós, como se sabe, pecou por tardia.
Contudo, se existem aspectos em que a resistência à mudança manifesta particular intensidade são, naturalmente, aqueles que à mentalidade popular dizem respeito.
Na verdade, aquilo que nos identifica hoje como portugueses não é, com certeza, a maneira de vestir, a opção laboral, as referências iconográficas culturais ou desportivas, ou, mesmo, sequer, aquilo que comemos ou bebemos, os filmes que vemos, os jornais que lemos!
É, sim, simplesmente, a maneira de pensar. É o conjunto de valores e princípios morais e éticos, muitas vezes diáfanos mas marcantes, que radicando numa matriz cultural ancestral nos fazem pensar e sentir como portugueses. Ou, como alguns dizem, pensar e sentir em português!
Novos contextos geram, como se sabe, novos valores, enquanto outros vão naturalmente desaparecendo na voragem da mudança, inaplicáveis às condições da vida moderna. Mas o desaparecimento não é imediato e não se faz sem interacções de continuidade. Assim, valores antigos vão, em cada momento, moldando, para o bem e para o mal, as circunstâncias do nosso futuro!
A valores tradicionais associados à honradez, honestidade, discrição, respeito pela palavra dada, humildade, determinismo, comunitarismo, predominância dos mais velhos e cooperação com vizinhos e parentes, sucedem-se, agora, valores sociais, não necessariamente melhores nem piores, mas mais aplicáveis à sociedade actual: tolerância, direito à diferença, democraticidade, criatividade, imagem, ambição, valorização infantil, espírito empresarial, reciclagem, competitividade, etc.
Neste contexto, sectores durante séculos marginais ou acessórios (crianças, mulheres, minorias étnicas, homossexuais, pessoas com necessidades educativas especiais, animais, o próprio meio ambiente), adquiriram uma importância cada vez maior, dando corpo a causas cada vez mais universais.

Não podemos dizer assim, em rigor, que vivemos uma crise de valores! O que vivemos são situações de transição de valores, acompanhando a profunda mudança social em curso.
Mas este processo nem sempre é fluente e harmonioso! Raramente o é, diga-se de passagem!
Muitos valores tradicionais persistem ainda hoje, com resultados, algumas vezes benéficos, outros nefastos.
Persistem, por arreigados às nossas formas de estar e de sentir, mas persistem, igualmente, como mecanismo subtil de defesa, quantas vezes inconsciente, face a uma sociedade (e aos seus representantes) que, infelizmente, nos continua a merecer pouca confiança.

Sem comentários:

Enviar um comentário