A impressão imediata que o
fenómeno das novas seitas religiosas nos transmite, é que o campo teológico,
durante séculos monopolizado pela Igreja está, desde algum tempo, sujeito a um
regime de concorrência que, embora possa chocar piedosas consciências não pode,
na verdade, ser ignorado.
A dinâmica das, assim
denominadas, "novas seitas" é um factor que tanto a Igreja Católica
como até algumas igrejas reformistas
instaladas entre nós, fariam bem em não menosprezar e perspectivar até
(porque não) a sua vinda como um desafio. Algo que, eventualmente, pudessem
capitalizar a seu favor como um estímulo susceptível de revitalizar as suas
comunidades de base (e de topo) hoje em dia mais ou menos amorfas e acomodadas.
É esta uma problematica que, de
vez em quando, parece cair no esquecimento público, para irromper depois,
bruscamente, quando mediática ou directamente nos entra, literalmente, pela
porta dentro.
Noutras vezes cruzamo-nos, na
rua, com manifestações desse tipo. Por exemplo, quando aproximando-nos do carro
deparamos, preso ao vidro, não com mais uma famigerada multa de estacionamento,
mas com um simpático folheto convidando todos os interessados para uma
grandiosa ”Campanha de Curas Divinas e Milagres”, marcada para um determinado
dia, entre as 12 horas e as 17 horas, no Teatro Municipal de um determinado
burgo.
A primeira coisa que me chamou a
atenção foi a duração do acontecimento: convenhamos que, nos tempos que correm,
cinco horas de “curas divinas e milagres”, é obra!!
Mas o que me intrigou,
sobremaneira, foram as referências a “curas divinas e milagres” como se de algo
diferente se tratasse. E eu a pensar que as “curas divinas” eram “milagres”!
Mas, modéstia à parte, depressa
me apercebi da subtileza que o marketing publicitário (ditado, provavelmente,
por inspiração divina), aqui envolvia: na verdade as curas divinas são
milagres, mas os milagres não são, necessariamente, curas divinas!
É, afinal, uma mera questão de âmbito: é que a “cura
divina” envolve apenas a área específica da saúde, enquanto os milagres podem
incluir aspectos tão díspares como ganhar no Totoloto, fazer regressar ao seio
familiar o “galo de raça” do marido, ficar apurado para a Casa dos Segredos ou
até ser eleito presidente da Sociedade Recreativa local!
Fácil, não é?! A não ser, é
claro, que tudo aquilo não passe de uma questão de semântica. Nesse caso as
“curas divinas” constituiriam intervenções da própria divindade. Existiriam,
então “curas divinas” e “curas não divinas”, estas últimas que poderíamos
denominar de.... digamos,.... curas de inspiração divina!
Todas elas, obviamente,
constituiriam do ponto de vista técnico, milagres. Só que uns, directos e
genuínos, à boa maneira antiga. Os outros, indirectos, por delegação, e
sujeitos com certeza ao necessário “despacho superior”.
É claro que tal hipótese acarreta
um problema complementar: se as tais “curas divinas” são na verdade prodígios
executados sem intermediários, directamente da divindade para o paciente, então
isso exige a presença, mesmo que em espírito, da referida divindade. Ora com o
crescente proliferar de milagres (sob a forma de “campanhas” ou não), que a
concorrência cultual exige, será que existe divindade que chegue para tanto?
Bem sei que Deus está em toda a
parte, mas também,...não exageremos!
Aliás, se pensarmos um pouco,
(esta coisa de pensar é, decididamente, um mau hábito) a mesma acarreta, ainda,
um outro problema. É que sendo esta uma iniciativa com local e hora marcada,
como é que a organização pode garantir a disponibilidade divina para essa hora
e local em particular!? Será que existe um qualquer acordo prévio com a mesma?
Será que a escolha do tempo e do espaço foi ela própria de inspiração divina?
Agora, do que eu gostei mesmo,
foi da expressão “entrada livre”!
Vivemos numa sociedade em que
tudo se paga, desde a água que se bebe ao direito a execretá-la! Em que se paga
para trabalhar, se paga por trabalhar e até se paga por não trabalhar! Em que
grande parte da massa cinzenta se dedica a idealizar necessidades sociais que,
acto contínuo, se tornam hábito e exigem um acrescer de encargos económicos,
daí advindo recursos vários para o mundo empresarial, que vão depois financiar
novas ideias, novas necessidades, num perpétuo ciclo vicioso.
E dizer que nesta mesma sociedade
os “milagres” são ainda grátis! É de facto uma completa subversão da lógica
consumista! É algo que conforta os corações e aquieta as consciências!
Até porque o referido
folheto/convite vêm ilustrado com uma foto de um simpático “bispo”, pelos
vistos a estrela da companhia. Um rapaz novo, de olhar sereno, transmitindo
confiança a rodos e proporcionando, com certeza, à mais ingénua donzela ou
respeitável senhora, o poder entregar-se confiantemente nas suas mãos! Nas suas
não, nas de Deus!
Confesso que apesar de tudo fui
ainda percorrido pela dúvida (ah, a dúvida!) de que tudo se tratasse de um
equívoco e que apenas as entradas fossem grátis. De facto, em rigor, não é dito
em lado nenhum que os milagres são grátis. Ou será que uma entrada dá direito a
um milagre de bónus, cogitei?!
Mas, mesmo que o não seja, é
certo e sabido que o preço será baixo, reflecti! Uma pechincha, com certeza, ou
não estivéssemos em época de “campanha”!
É um facto que o dito papelinho
não vem assinado. O que levanta, uma vez mais, algumas interrogações. Será que
a organização da dita “campanha” é composta, exclusivamente, pelo dito “bispo”?
Será que a sua relação com o divino é assim uma espécie de “face to face”?!
Constituirá o mesmo como que um “free lance” do sobrenatural?!
Será uma organização clandestina,
procurando fugir às impiedosas perseguições eclesiásticas? Será uma sociedade
secreta; uma espécie de Rosa-Cruz em versão yuppie?
Ou, pelo contrário, a não
revelação da entidade organizadora constitui pura e simplesmente uma genuína demonstração
de modéstia que a nossa deturpada e materialista consciência contemporânea não
deixa perceber?
São interrogações que ficam, num
tempo que passa. Que, acredito, atormentam muitos espíritos de que constituo,
aqui e agora, apenas o catalisador da sua compreensível ansiedade. À espera de
novos dados que as clarifiquem ou, em alternativa, de um lampejo de inspiração
divina que, num ápice, lance finalmente a luz da verdade sobre toda esta
enigmática e complexa problemática.
É certo que muitas destas questões
teriam sido facilmente esclarecidas com a simples presença na solicitada sessão
no dia e hora requeridos.
Confesso que estive tentado a participar. Uma “cura
divina” é algo que dá sempre jeito e uns milagritos mesmo que modestos (nesta
situação de crise) vinham mesmo a calhar.
Mas, pensando melhor, conclui que
perderia assim o móbil perfeito e a oportunidade única para estas sublimes
reflexões filosóficas que convosco aqui partilho; milagre de discernimento e
composição literária só comparável, afinal, à “campanha de milagres” que lhe
serve de inspiração!
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