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quinta-feira, 19 de maio de 2011

Sagrado… mas pouco

Estamos no mês de Maio. Desde as calendas do mesmo, as estradas enchem-se de peregrinos, quais bandos de melíferas abelhas, pintalgando de amarelo e negro os percursos processionais que afluem a Fátima.
Percursos hoje apoiados por todo o tipo de enquadramento assistencial, conjugando, como em simbiose, a devoção fatimita, o obrigatório pagamento de promessas, as caminhadas de manutenção e, a cada vez mais necessária, convivencialidade social.
Nada em contrário. Afinal, o sagrado e o profano constituem o verso e o reverso de uma mesma moeda, na ambivalência que os atributos de transcendentalidade têm para cada um de nós. A sua relação foi sempre íntima, a linha de separação fluida e difusa.
Contudo, vivemos hoje numa sociedade em grande parte hipócrita e mercantilista, perdida que está, de algum modo, num espaço de transição entre valores comunitários e tradicionais em desaparecimento e valores modernos (de cidadania, dir-se-á) ainda escassos e de incipiente importância. E estes aspectos reflectem-se, naturalmente, nas nossas relações com a esfera do divino.
Na verdade, para lá daqueles (eventualmente a maioria) que procuram aqui, quantas vezes dolorosamente, a remissão por graças recebidas ou buscam num percurso sacrificial a sua contribuição para um universal e sempre insuficiente desagravo divino, outros há que pretendem saciar, apenas, um pouco exigente apaziguamento moral, vindo muitas vezes a optar por fórmulas imaginativas de limitação da sacrificialidade a níveis quase irrisórios.
Não falo já da inqualificável estratégia de pagar a outros para fazer a peregrinação por nós, situações que, a seu nível, lembram as vendas das indulgências do período mais negro da história da Igreja.
Falo, sim, daqueles, bem mais numerosos, que se limitam a transferir os seus usuais e saudáveis circuitos de manutenção física diários ou semanais para as estradas que levam a Fátima e, finda a etapa, regressam confortavelmente de automóvel a casa onde os espera uma farta refeição (sim, que o esforço abre o apetite) e um sono reparador.
E no dia seguinte ou, até, na semana seguinte, percorrerão mais uns quilómetros a partir do ponto onde tinham chegado! E, por aí adiante!
É esta uma estratégia cada vez mais usual. À medida dos chico-espertos que somos!
Na realidade, pode-se mesmo classificar, a mesma, como fraude. Consciente, ou não, cada um o dirá! Afinal, o intimismo da promessa não nos permite saber em que condições as mesmas são assumidas.
Agora, o que é particularmente estranho, é o devoto pagar a promessa daquela maneira ligeira e mistificadora e continuar a achar-se merecedor de uma retribuição divina sob a forma de recompensas que, quantas vezes, constituem determinantes reparações e alívios dos seus mais desesperados medos e inquietações.
É que, em última instância, qualquer pagamento de promessas exige uma equitatividade entre aquilo que se recebe e aquilo se está disposto a dar.
Mesmo que implícita. Mesmo que vista na óptica, naturalmente, do suplicante.
Não obstante, equitatividade. E, neste caso, sob a forma de um sacrifício.

E então, das duas uma, ou os tais suplicantes, têm hoje uma ideia menorizada da validade taumatúrgica das respectivas divindades ou atribuem uma excessiva valorização ao incómodo a que se dão neste enviesado percurso sacrificial.
É que se o acto de pagamento, mais que um sacrifício, se assemelha a prazer, então dificilmente estamos a cumprir aquilo que, é suposto, termos prometido. Estamos, simplesmente, a fazer de conta!
E se tivermos em consideração que as promessas são feitas a alguém (a determinadas entidades mais ou menos divinas), então não só estamos a fazer de conta como estamos a enganar as mesmas! A enganarmo-nos, pelo menos!
É a tal história da letra da lei e do espírito da lei! Lembram-se?
É este, aliás, um fenómeno preocupante! Não só pelo que é, mas essencialmente por aquilo que, de forma mais abrangente, nos revela: uma clara degradação moral nas relações entre os Homens, que se reflecte, assim, nas relações dos Homens com Deus.
Se não fosse tão grave poder-se-ia dizer que se tratava, de alguma maneira, de uma singular e inesperada consequência conjuntural da versão Pinóquio do Engenheiro Sócrates!
Se não fosse, estruturalmente, tão grave!

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