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Espaço de comunicação que se espera interactivo, este é um instrumento que permite estar próximo de amigos,presentes e futuros, cujas contingências da vida tornam distantes mas nem por isso menos merecedores de estimas e afectos.


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segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Nós e os Outros - A naturalidade da diferença

Já algumas vezes tenho abordado a problemática da naturalidade da diferença (ou da sua ausência) independentemente das tantas vezes apregoadas liberdades de opinião (e respectivas liberdades de ação) que os novos tempos consagram. Contudo, consagração à parte, continuam a manifestar-se inúmeras dificuldades em reconhecer aos outros, na prática, efetivos diretos de opinião e, principalmente, de ação. Principalmente quando tais opiniões/ações colidem com as nossas. Em assuntos que reputamos de importantes. Quando pretendem questionar causas que nos são caras e gratificantes. Por exemplo, nos recentes e sucessivos debates (mais discussões/altercações) acerca das peripécias futebolísticas que, diariamente, nos invadem através dos canais noticiosos nacionais, têm contribuído para usualizar entre nós a naturalidade, sim, mas da opinião dogmática como coisa comum e natural. Ter opinião diferente é aí (se de cor diferente) sinónimo de abominável comportamento ou, se da mesma cor) de inqualificável traidor à causa; de alguém que não merece dizer-se adepto de um determinado clube. A questão de ter uma opinião de acordo com os interesses do respetivo clube é assumido não só como natural mas igualmente como correto. E são este tipo de pessoas que, pela sua multiplicação e omnipresença, vão de maneira sub-reptícia formatando o senso comum nacional. São estes os valores que vamos, subconscientemente, interiorizando. Com consequências particularmente gravosas. A naturalidade da diferença transforma-se, aqui, na diferença da naturalidade. Em discussões em que se pretende não convencer mas vencer; a qualquer preço e custe o que custar. Vem isto a propósito de umas imagens que, não há muito tempo, correram na comunicação social, a propósito de uma manifestação anti taurina em Albufeira. A história conta-se depressa: no decorrer de uma tourada, alguns (poucos) militantes anti touradas invadiram a arena, ostentando mensagens de condenação da festa brava. Tendo sido, prontamente, detidos pela polícia. Até aqui tudo bem! Os manifestantes interromperam temporariamente uma iniciativa legal a decorrer (logo numa ação ilegal) e as forças da ordem fizeram aquilo que lhe competia: detendo os manifestantes que, com certeza, foram apresentadas à justiça que lhes aplicou as medidas judiciais previstas na lei. Contudo, mostravam as imagens, enquanto era conduzido por dois polícias, um dos manifestantes, era violentamente agredido por trás, perante o regozijo, ululante, da populaça e o alheamento, total, dos agentes da autoridade. Simultaneamente, o agressor mimoseava-o ainda com obscenidades que, o canal (não me lembro qual), prestavelmente, traduzia. A pergunta que se impõe é a seguinte: será que um cidadão detido deixa de ter direitos? Ou os agentes estavam demasiados ocupados para impedir, ou tentar impedir o agressor? Ou, simplesmente, estavam com medo? Será que as imagens que identificam (suponho eu) o energúmeno serão usadas como elemento susceptível de abrir uma investigação? Ou nestas coisas das sessões de porrada, mesmo que nas barbas da polícia, quem tem unhas (ou não tem as unhas presas) é que toca viola? Era um manifestante anti taurino. Podia ser um manifestante pró taurino. Ou um defensor do aborto. Ou contra o aborto. Ou contra a morte assistida. Ou a favor dela. Isto para só falar de causas sociais que enformam de susceptibilidades várias. Continuam a ser seres humanos; merecedores de todos os direitos e mais alguns que tal natureza lhes confere. No caso citado, apenas não detentor dos imperativos de liberdade. Apenas isso!

A MULHER DO RIBATEJO - MITOS E EQUÍVOCOS

Pode-se dizer-se que, tradicionalmente, o papel social da mulher do Ribatejo tem sido objeto de vários equívocos? - O equívoco, afinal, é só um: o de que os carateres de personalidade próprios da mulher ribatejana, que a tradição consagra, eram particularmente humildes e subservientes. Daí decorre, depois, todo um conjunto de erróneas implicações sociais e até culturais. Na verdade, não só tal configuração psicossocial não corresponde à realidade, como a mesma se nos revela aqui, pelo contrário, uma personagem bem mais autónoma e afirmativa; se comparada com a mulher de outras regiões. E, arriscar-me ia a dizer, com a mulher das outras regiões! Mas, se é assim, como se chegou aí? Digamos que a suposta subserviência da mulher ribatejana surge como contraponto à utilização exacerbada do “mito do campino” e decorre das supostas virilidades e destemores do “homem do Ribatejo” consubstanciado este, precisamente, na figura do campino. E se o campino foi elevado a arquétipo ribatejano no contexto dos arquétipos regionais que o Estado Novo promoveu como expressão sublimada das virtudes da raça (e, no seu caso, como símbolo do cavaleiro português de antanho que garantiu a independência nacional nos momentos difíceis de afirmação nacionalista), ao mesmo foram-lhe imputadas diversas e elevadas qualidades e virtudes que, gradualmente, se foram mitificando. E se, como diz o povo, “só pode haver um galo numa capoeira”, o estatuto da mulher irá sofrer por arrastamento inverso. Virá, então, a ser encarada como alguém particularmente passivo e obediente. Situação, que convenhamos, não correspondia, de todo, à realidade existente. Como poderíamos então, em termos de estatuto social, caracterizar a mulher do Ribatejo? Esclareça-se que falamos, essencialmente, das “mulheres do campo” que, durante séculos, marcaram, social e laboralmente, toda a região; nomeadamente o Vale do Tejo a que, em tempos passados, se chamava Borda d´Água. Trabalhadoras jornaleiras, como o homem. Que, como este, tinham a sua praça todas as semanas, onde iam vender a sua força de trabalho. Aí, discutiam preços e condições com capatazes e proprietários. Daí, saíam para trabalhar, afastadas dos maridos, às vezes por dezenas de quilómetros. Labutando, toda a semana, lado a lado com outras mulheres (ou, até, com homens) de outras localidades. Pessoas que, recorrentemente, tinham de reafirmar (alto e bom som) a sua fama de boas trabalhadoras; pois disso dependiam trabalho e salário. Algumas, ainda, eram capatazas, habituadas a comandar grupos de trabalhadoras, servindo de porta-voz perante o feitor ou o proprietário, reivindicando remunerações ou condições de trabalho. Pessoas de opiniões firmes e decididas, extrovertidas e assertivas; expressando e exigindo maior autonomia social. Eram as mulheres do campo, camponesas morenas de corpo robusto e pêlo na venta, de sonoras gargalhadas e língua afiada, temperadas da geada e do calor da lezíria. E até onde vai, afinal, essa autonomia? Não existe, aqui, uma inversão social, esclareça-se. O homem continua a ser o chefe de família e a exprimir, de forma algumas vezes pública e violenta, esse estatuto. Mas a relação com a mulher e os filhos sofre de inegáveis caracteres subversivos, expressos familiar e comunitariamente. Digamos que a imposição dessa liderança é, neste caso, aceite menos pacificamente. O come e cala de tantas outras zonas do país é aqui, diversas vezes, substituído pelo, mais problemático, come, …e não cala! E de que maneira isso se refletia no dia-a-dia destas pessoas? Ao contrário do que emana da literatura regionalista, elevadora do homem ao tal papel de arquétipo regional (feito de virtudes várias e ausência de defeitos), pode dizer-se que a mulher ocupava, no Ribatejo, uma posição de género significativamente menos subordinada que noutras zonas do território nacional! O seu papel é mais marcante, tanto social, como profissionalmente! Proletária e jornaleira, a mesma emerge, aqui, das brumas de uma história local e regional (em grande parte por fazer), como disposta a liderar causas sociais e comunitárias diversas. Por exemplo, enquanto rapariga, na reivindicação do direito a escolher o conjugue ou, como mulher, na relação com o padre e a Igreja. Nestas situações e noutras, a mulher reivindica condições de ação e opinião muito pouco comuns na tradicionalidade feminina portuguesa. Nas atividades lúdicas, como as danças e os cantares, o seu papel surge significativamente valorizado. Tanto nas desgarradas (competições de improviso poético extremamente populares), como até em certas danças mais competitivas como o bailarico ou o fandango, parte considerável das rivalidades locais, explícitas ou implícitas, eram (ao contrário do que se pensou durante décadas), expressas numa perspectiva homem/mulher! Confirma-se, então, que a mulher também dançava o fandango? Naturalmente. De facto, não só parecem ter sido dançarinas espanholas que, no século XVIII, alimentaram especialmente a popularidade desta dança nos teatros lisboetas como, inclusive, disseminado já um pouco por todo o país, as descrições efetuadas por autores portugueses e estrangeiros, durante a segunda metade de setecentos, apresentam-no, quase sempre, como dançado entre homem e mulher, em pé de igualdade. Mais recentemente (de fins do século XIX até aos nossos dias) e mesmo sem a realização de um qualquer estudo global, tanto os estudos monográficos locais como as pesquisas minimamente sustentáveis (a propósito ou não) desenvolvidas por diversos grupos do Ribatejo constituem, disso, prova cabal. Como se compreende, então, que muitas representações folclóricas só recentemente, tenham aceite a participação feminina? É que, dentro do contexto que falámos, a identificação mítica do fandango com o homem do Ribatejo, dotado este dos tais caracteres psíquicos excecionais de força, vigor, destemor e virilidade, tornava naturalmente interdita, à mulher, a partilha de valências de caráter que lhe eram atribuídas. A sublimação mítica idealizou, aliás, cenários pictóricos em que o campino, dançando o fandango, seduz e conquista a mulher; completamente rendida aos encantos do bailador. Na verdade, esta interpretação; pelo carácter restritivo e determinista das complexidades da natureza humana, pelo papel estritamente passivo (e de alguma forma servil) da mulher e pela redução de um sentimento à mera avaliação de um desempenho artístico, constitui, em rigor, um autêntico disparate! Não obstante, persistiu até hoje. E foi criando, contra todas as evidências, um insensato senso-comum. E porque é que nunca se percebeu isto? Essa é, afinal, a grande questão: - Primeiro porque durante décadas ninguém estudou o Ribatejo. Nem sequer o próprio campino foi objeto de estudo. Pelo contrário, era apresentado, apenas, como um símbolo mítico regionalista: alguém que tinha nascido já adulto e montado: cavalgando, garbosamente, pela vastidão da lezíria. Dito de outra maneira, o Ribatejo era o campino e, este, o “Homem do Ribatejo”. O fandango era sua dança. Os touros, o seu desígnio. - E, convenhamos, quando nas décadas de oitenta/noventa isso foi sendo, em parte, ultrapassado, já tais questões de género não eram tão evidentes, O modelo laboral tradicional tinha-se já, em grande parte, transformado. - Depois, ainda, porque os ranchos folclóricos, na sua grande parte, não possuem nem as capacidades técnicas nem sequer interesse especial no estudo das condições de género. - E, finalmente, porque os mitos exercem uma ação desertificadora em seu redor. A mitificação positiva do homem arrastou, afinal, uma gradual mitificação negativa da mulher. E os mitos, após, implantados, são extremamente difíceis de extirpar. É muito grave se tal equívoco persistir no tempo? Bom, para já, é uma cedência ao erro e um atropelo à verdade. Naturalmente injusto para os registos memoriais da mulher ribatejana; cuja vida constituía nesses tempos, isso sim, um paradigma épico de esforço e superação. E, principalmente, não contribui em nada (muito pelo contrário) para melhor perceber a realidade social e cultural de género, no nosso país e nossa região. Afinal, só amamos aquilo que conhecemos. E só conhecemos aquilo a que damos suficiente importância, para o olhar com olhos de ver.

Santos, causas e presciências

Por estranho que pareça à primeira vista, se existem, hoje, aspetos facilmente previsíveis são, com certeza, os respeitantes aos processos canónicos de santificação. Principalmente, agora, que o Mundo se tornou global na sua perceção, mas uma aldeia na sua interação. Em que as conveniências canónicas obedecem a pressupostos universais e particularmente claros na adequação a evidentes imperativos canónicos e apostólicos. Ou isso ou, então, deverei mesmo possuir insólitas capacidades premonitórias, até recentemente desconhecidas, que me têm permitido prever o futuro como qualquer profeta místico que se preze. Desde a previsão da canonização rápida de João Paulo II (acontecida em 2014) que desenvolvi na obra “Videntes e confidentes: Um estudo sobre as aparições de Fátima”, editado em Abril de 2009. Até à canonização de Francisco e Jacinta (em 2017), há décadas pendente pela funcionalidade devocional do Santuário: que sendo mariológico e universal, reporta (naturalmente) as solicitações de graças, diretamente, à Virgem Maria. Afinal, João Paulo II foi um papa sofredor, alvo de atentados, oriundo do, à altura, ainda diabolizado Leste e que, convenhamos, de alguma forma, abriu a Igreja ao Mundo. E no que concerne aos assim chamados “pastorinhos de Fátima”, tinha sido até admitido pela Igreja, o recurso, em última instância, a uma canonização mesmo sem o omnipresente milagre probatório. Excecionalidade, contudo, não necessária pois, após solicitação pública, logo se desencadeou (como aí tive, igualmente, oportunidade de prever) o ansiado milagre. Afinal, os “pastorinhos”, tinham mesmo que ser rapidamente canonizados já que o processo de Lúcia (entretanto falecida) o exigia. Porque Lúcia é a sustentação de Fátima. As aparições são ela! E o desenvolvimento posterior dos factos, ainda mais! Logo esta tinha de ser objeto de um processo particularmente rápido. Por isso, tanto no livro “Foi a 13 de Maio na Cova da Iria”, editado em Março de 2017, como em entrevista concedida a um periódico regional em Janeiro do mesmo ano, tive oportunidade de afirmar que, a mesma, seria com certeza “canonizada em tempo recorde”. Confesso, contudo, que não esperava recorde tão grande, como aquele que, recentemente, um periódico nacional revelava: mais de 1600 milagres; oriundos de cerca de uma vintena de países! É obra! Mais se informava, ainda, que as intervenções milagrosas se têm desenvolvido a uma média de 10 a 15 por mês! Espera-se, aliás, que a mesma seja declarada “Venerável”, já em meados do próximo ano. E eu a criticar a IURD por realizar “campanhas de milagres” com tempo e hora marcada! Afinal, este é um processo de garantida promoção universal. Pela mediatização das intenções implícitas e até explícitas e pela globalidade interativa dos tempos modernos. Chocante é, apesar de tudo, verificar o deserto taumatúrgico que envolveu Jacinta e Francisco, durante décadas; não resultando, daí, um simples milagre que se visse, em contraste com à enxurrada taumatúrgica “lucialina” em presença. Afinal, Fátima pretende (naturalmente) perpetuar-se como o “grande altar do mundo” que é e, “Santa Lúcia” constitui, como é óbvio, vector determinante dessa estratégia. E se os santos precisam tanto dos homens como, estes, deles (é a devoção humana, afinal, que os sustenta e vivifica), percebe-se assim, melhor, a manifesta desigualdade dos panteões celestes. Seja como for, estes fluxos de santificação fatimitas ameaçam não ficar por aqui. Pois o processo de beatificação do Cónego Formigão, iniciado em 2000 (e igualmente retardado por razões análogas às dos ditos “pastorinhos”) recebeu também, agora, um impulso determinante, com a concessão do atributo de “venerável” por parte do Papa Francisco. E, também aqui, a sua concretização não deve tardar. Aliás, o encarecido desejo manifestado na comunicação social por parte da Vice- postuladora da respetiva causa: “Temos grandes esperanças de que ocorra brevemente um milagre” corresponde, na prática, ao desencadear do mesmo. Que, a mimética, mais tarde ou mais cedo (provavelmente, mais cedo que mais tarde), proporcionará. E como, pelos vistos, possuo as tais insuspeitáveis capacidades premonitórias posso, assim, garantir à citada Vice-postuladora que, após tão veemente anseio público manifestado, o ansiado milagre irá, naturalmente, “ocorrer”. Esteja descansada. Enfim, lá iremos ter, finalmente, um santo mais ou menos ribatejano. Termine-se, a propósito, com uma simples reflexão acerca das diferentes naturezas estratégicas destes processos que geram afinal (como estamos vendo), taumaturgias tão dimensionalmente opostas! Na verdade, enquanto alguns são fomentados e pressionados pela força da adesão das massas (expressa numa devoção crescente e assente em taumaturgias diversas) e aceites depois (ou não) pela Igreja, outros, como os aqui referidos, decorrem essencialmente de iniciativas e interesses eclesiásticos; revelando portanto, algumas vezes, dificuldades acrescidas na obtenção de milagres probatórios minimamente sustentáveis. Sendo muitas vezes, necessário, um ligeiro empurrão.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Tolerâncias e intolerâncias na Escola Multicultural

A coexistência de culturas, em sociedades cada vez mais pluriculturais (que exacerbados imperativos migratórios acarretam) é, hoje, ditada por imperativos de diferenciação económica entre países (de um fosso económico cada vez maior) e de facilidades de informação e deslocação planetárias. Entretanto, vivemos numa sociedade que tende para a globalização, não só económica e comunicacional mas, ainda, de valores e de princípios, que tendem, cada vez mais, para universais e humanistas. Mas, tender não é necessariamente chegar! Muito longe disso! Diferenças étnicas subsistem, naturalmente: perenes em termos físicos e de mudança lenta em termos culturais. E assim irão continuar! È, portanto imperioso, aprendermos a viver com grupos e indivíduos portadores de valores e costumes manifestamente diferentes dos nossos. Na Sociedade e na Escola! Transportando-nos isto à, assim denominada, “Escola Intercultural”, e à reflexão que se impõe sobre o racismo e a xenofobia, sobre a tolerância e a intolerância face ao “outro”, numa Escola que se quer verdadeiramente do século XXI. E o primeiro aspeto que devemos ter em conta, é que se trata de uma problemática complexa; De complexas causas, de complexas motivações atuais e, naturalmente, de complexas, abrangentes e delicadas soluções. Pressupostos de intolerância Comecemos por nos debruçar sobre as estruturas subjacentes às atitudes de intolerância, tanto na sua componente cognitiva (como se sabe, em grande parte estereotipada), até à social (não menos importante) passando, igualmente, por uma vertente emocional omnipresente e, frequentemente, culpabilizadora. Como se sabe, os estereótipos pressupõem uma simplificação da realidade social, simbolizando-a e tornando-a, funcionalmente, mais percetível e identificável. Por exemplo, em termos de identificação dos grupos humanos, a estereotipação tende a entendê-los como de um indivíduo só se tratasse, sem reconhecer as, naturais diferenças (ou, mais rigorosamente as infinitas diferenças), das personalidades que os constituem. O caso mais extremo desta categorização, pode ser exemplificado pelo pensamento dicotómico; isento de matizes e situações intermédias. São brancos ou pretos, bons ou maus, amigos ou inimigos, “nós” ou os “outros”. Assim, um eventual estigma envolve todos os indivíduos do grupo considerado, não tendo em conta diferenças de idade, sexo, estatuto social, formação cultural ou quaisquer outras. Correspondem a uma visão da realidade muitas vezes irracional (emotiva, se quisermos), mas com que deparamos frequentemente; e que, de alguma forma, envolve o nosso quotidiano. Esta categorização bipartida leva-nos, depois, a identificar os outros por uma perceção simplista e arquétipa de um qualquer aspeto físico (principalmente) ou cultural, ignorando-se porém, de forma muitas vezes ostensiva, as restantes particularidades. Tal atitude, discriminatória já, potencia-se depois, especialmente quando se funde com outros aspetos de carácter (por exemplo, quando o indivíduo pertence a um grupo com menor poder ou prestígio) ou emocionais: por exemplo, quando o mesmo indivíduo ou grupo são vistos como uma ameaça. Ensaiemos, então, um esboço de síntese caracterológica das razões psicossociais que podem levar a incrementar estas visões discriminatórias, aumentado o risco da intolerância face aos outros. - Centrar a nossa atenção nas diferenças entre nós e os outros, tende a exagerar tais diferenças em detrimento das semelhanças. - A eclosão de dois fatores considerados potencialmente ou efetivamente negativos (por exemplo a chegada de emigrantes e o incremento da droga, da criminalidade ou até do desemprego) tende a relacionar os mesmos num contexto absoluto e linear de causa e efeito. - Os próprios estereótipos guiam a nossa interpretação da realidade e criam memórias seletivas dos acontecimentos, o que dificulta a sua superação. Digamos que, os dados positivos são considerados como exceção, os negativos como prova! - Finalmente, mesmo que venhamos a considerar positivamente um qualquer indivíduo doutro grupo/cultura, o estereótipo impede que generalizemos essa apreciação. Será visto, mais uma vez, como uma exceção. Uma pessoa por quem temos estima, não porque,... mas,... apesar de! Na verdade, grande parte da nossa intolerância resulta de situações essencialmente emocionais que, embora possamos dizer não resistiriam a uma simples análise metodológica, dominam e persistem, numa irracionalidade muitas vezes cega mas, nem por isso, menos eficaz! Nós e os “Outros” Por exemplo, os “bodes expiatórios”, decorrentes da culpabilização dos “Outros” face a situações vigentes de tensão e frustração ou, até, de instabilidade social ou económica. A história recente do Povo Judeu, numa Europa supostamente humanista, é bem paradigma, lamentável, de tal pressuposto. A isto podemos juntar a necessidade de afirmação do “nosso grupo” face ao “outro”, ao estranho, reforçando a nossa coesão, mas igualmente o nosso estatuto interno e, obviamente a efetiva integração no mesmo. E aqui, podemos dizer que existem dois vetores que tendem a potenciar esta atitude: por um lado o reforço da nossa identidade construída assim por oposição aos outros, por outro, a criação do inimigo externo, tornado assim ”bode expiatório” de todos os males e mais alguns. Situação que não deixa sequer, muitas vezes, emergir a natural empatia e solidariedade para com o marginalizado e discriminado. E, o mais paradoxal, é que nos baseamos numa perceção pretensamente ética, acreditando (querendo acreditar) que o outro é o único (ou principal) culpado da sua situação. Deus ou a Natureza, determinismos ou fatalidades conjunturais, razões aleatórias ou pressupostos primevos, são vistos como causas explícitas e implícitas, que sustentam inferioridades evolutivas técnicas ou económicas, políticas ou sociais, justificadas assim e, supostamente fundamentadas, pela ausência ou menoridade de capacidades ou de conhecimentos considerados próprios de gente civilizada! Entre outras coisas, isto descansa a nossa consciência! São, portanto, atitudes deformadas da perceção da realidade que nos levam, muitas vezes, a encarar os outros como inferiores ou piores. Deformações que resultam de manifestas expressões de interesse e solidariedade grupal, do desconhecimento, do horror à diferença, quantas vezes... do medo! Atitudes preconceituosas, que servem, frequentemente, para legitimar diferenças grupais de estatuto e poder. Foi, aliás, considerando os escravos e os “selvagens” como “naturalmente inferiores”, que se justificaram durante séculos, genocídios e expropriações de bens, de territórios e, até, da própria dignidade humana. A escola e a diferença De tudo isto se deduz que não basta abrir as nossas escolas a outras culturas étnicas. Nem incluir elementos culturais que lhe são próprios, no currículo escolar. Nem sequer (e dando já de barato o complexo de dificuldades associadas a esta estratégia) abrir a Escola à Sociedade em que esta está inserida. É preciso tudo isso! Mas, convenhamos, bem mais do que isso! È preciso que o docente seja mais que um papagueador do programa. Mais que um simples catalisador, mesmo que fluente, da transmissão do conteúdo programático aos discentes. Que não se reduza a reconhecer a presença de outras realidades culturais na sala de aula. Que não as encare como expressões pitorescas de singularidades étnicas. Que não as veja como variantes do modelo padrão existente entre nós. Que não trate os seus portadores como uma espécie de atrações circenses, nem expresse, por eles, um paternalismo quantas vezes humilhante! Mesmo que bem intencionado! É preciso que esteja sensibilizado para a naturalidade da diferença, que o etnocentrismo tantas vezes subverte, implícita ou explicitamente. Que veja na diferença não um obstáculo, mas um estímulo! Não uma contradição, mas um enriquecimento dos valores patrimoniais em presença! Que perceba que as diferenças entre as culturas (que os diferentes grupos humanos veiculam), são profundamente influenciadas pelo contexto social e pela transitoriedade histórica. Por opções de progresso e por diferenças de oportunidade. Que, por exemplo, já na África existiam grandes civilizações, capazes de erigir construções ciclópicas (consideradas hoje maravilhas do mundo), ainda os europeus corriam atrás de bisontes com machados de pedra! Estará então dotado de condições psicossociais para vir a desenvolver mecanismos pedagógicos e vivenciais que permitam aos alunos tolerar melhor a incerteza (que é nossa companheira inseparável no mundo de hoje), de forma a fazer consolidar identidades em formação sem necessidade de o fazer contra quem quer que seja. Promovendo e estimulando contactos intergrupais e interpessoais. De forma a descobrir que somos, ao mesmo tempo, iguais e diferentes: homens e mulheres, europeus e africanos, “gadjés” e ciganos, cristãos e muçulmanos, indivíduos com ou sem “necessidades especiais”. Vivendo a tolerância como valor; nunca como obrigação. Mesmo que revestida do prestígio humanista contemporâneo. Estará, então, em condições de ajudar a fazer de uma Escola com todos, uma Escola para todos. Ou, se quisermos, uma Escola de todos! Assim lhe sejam fornecidas condições instrumentais, temporais e, principalmente, psicossociais. De que, hoje, tanto carecem.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

O Ano do Centenário

Terminou o Ano do Centenário. Com Papa e sem Papa, sucederam-se diversas iniciativas (cerimoniais ou não), bem como emergiu toda uma peculiar torrente editorial, aproveitando, afinal, a boleia do momento. A grande maioria de um de dois tipos: os apologéticos e confessionais: envolvendo, às vezes, a apreciação histórica e a contribuição papal e os pseudo memoriais; recolhendo testemunhos de personagens mais ou menos relevantes da sociedade portuguesa; estratégia, afinal, sempre eficaz. Congressos, simpósios e produções audiovisuais, ensaiaram supostos contraditórios. Suficientes, para relevar diferenças. Insuficientes, para constituírem opção conclusiva. Estudos, percecionando os factos nucleares disponíveis e conhecidos enquanto meros dados de pesquisa, contam-se pelos dedos de uma mão. E,… ainda sobram dedos! Mesmo assim constituíram uma singularidade mais ou menos insólita. Dir-se-á, portanto que, também por isto, alguns factos se vão tornando menos interditos. Algumas análises, menos constrangidas. Algumas conclusões, menos estigmatizadas. Sintetizemos então, à guisa de reflexão, os traços básicos de uma fatimologia atual que, apesar de tudo, vai adquirindo traços mais claros; enquanto dicotomia mais ou menos interativa entre o objetivo facto científico e o subjetivo dado de fé. - Aparições como a de Fátima constituem fenómenos bem mais frequentes do que é suposto à primeira vista. - Afinal, em alturas particularmente difíceis, as súplicas tornam-se especialmente fervorosas e as relações entre Deus e os Homens tendem a assumir um carácter direto e imediato. - Estabelece-se, assim, um atalho na relação com a esfera do Divino. E a intermediação clerical torna-se dispensável. – No caso de Fátima, a conflitualidade entre o Governo da República e a Igreja foi o principal fator que despoletou os fenómenos. - Assente, este, em propícias condições socioculturais e na existência de potenciais videntes; possuidores de marcantes propensões alucinatórias. - Videntes que participam, sempre, de especiais idiossincrasias. Sentem-se como “escolhidos” por Deus; seus “mensageiros na Terra”. - São muitas vezes pessoas simples, de formação cultural baixa, emotivos e impressionáveis, levando uma existência dura e boçal, quantas vezes sofrida, sem perspectivas de melhoria. - Para eles o mundo é palco de uma luta entre o bem e o mal. Luta perpétua, em que o mal confere, de alguma forma, sentido ao bem e um importante desígnio ao respetivo sofrimento. - A aparição proporciona-lhes uma importante rutura com o quotidiano. Que os resgata à banalidade prosaica da sua existência e confere uma razão de ser à mesma. Tornam-se a mão direita de Deus. Representantes, na Terra, dos interesses do Céu. - São quase sempre sinceros e convictos da “sua” verdade (por mais delirante que seja) e mesmo que os faça sofrer. Quando, não, buscando mesmo o soteriológico sofrimento. - A inclusão de confidências e “segredos” transforma-os em confidentes da divindade. - Neste caso, só Lúcia é vidente e confidente. As aparições são ela! – À semelhança de La Salette e Lurdes, no princípio Fátima constitui um acontecimento meramente popular e local. - As conversas, extremamente prosaicas (próprias da idade de Lúcia), são meramente locais; a preocupação com a Guerra, as mortes e as doenças de vizinhos e conhecidos. - Afinal, trata-se de crianças; em que o real e o simbólico de uma teologia necessariamente prosaica, se confundem em inconsciente simbiose. - Fátima partilha, aliás, de um modelo usual à época: crianças, pastoras, local ermo, dureza de vida, acidente geofísico, construção de um templo, milagre probatório: nascente milagrosa, prodígio do sol, curas sobrenaturais. - Entre diversos outros temas, nem o “Anjo”, nem o “Imaculado Coração de Maria”, nem as referências à Rússia, nem sequer os famosos “Três Segredos”, constam dos testemunhos primevos. - O usual, nestes fenómenos é a rejeição por parte da Igreja. Pois, os mesmos, dispensam e menorizam o papel de intermediários dos sacerdotes. - Na verdade, aceitar que Deus resolve atalhar a sua comunicação com os Homens escolhendo, para tal, uma criança ou um personagem banal (quantas vezes simplório), não é fácil. - Daí, também, a desconfiança do Pároco de Fátima. E do Cardeal Mendes Belo. Percebe-se, contudo, desde o início, uma atitude de abertura/apoio de alguns clérigos (como o Cônego Formigão) de especial influência na Região. - Entre 1917 e 1920/1 o processo mantêm-se como que em suspenso; esperando-se tempos mais favoráveis. A partir daí, tudo começa a mudar. - A morte de dois dos videntes e a colocação, na recriada Diocese de Leiria, de um bispo especialmente devoto do marianismo, criam as condições determinantes que levarão à implementação do Santuário. - Tal como aconteceu com Lúcia, a colocação dos videntes a recato é, nestes casos, condição necessária ao gradual reconhecimento. - As configurações das entidades manifestadas neste tipo de fenómenos são modeladas pelas particularidades etno-culturais em presença. Refletem os modelos estereotipados que imagens e gravuras iconográficas apresentam em templos ou publicações mais ou menos catecúmenas. – Também as linguagens e preocupações demonstradas pela “Senhora” são, naturalmente, aquelas que uma criança daquele tempo, daquela idade e daquele lugar, poderia conceber. - Podemos dizer que os testemunhos primevos, são aqui especialmente prosaicos, breves, frios e de uma confrangedora falta de assunto. Tudo se resume “à Guerra” e ao desagravo pelos “pecados do mundo”. – As profecias sagradas são, quase sempre, contingentes, eventuais ou controladas pelo profeta. Ou, até, constituindo revelações posteriores ao acontecimento. O que não aconteceu, de todo, em Fátima, com a profecia, falhada, do “fim da guerra”. – Os fenómenos de rotação solar são parte integrante da nossa tradição popular. Acreditando-se, por exemplo, que ocorrem ciclicamente em alturas especiais do ano; como as alvoradas do dia de São João, de Natal ou do 1º de Maio. - São condição de especificidades atmosféricas que, pela sua singularidade (vista como prodigiosa) e pelo frenético misticismo em presença surge, quase sempre, associadas a estes fenómenos. - Após década e meia de completo isolamento Lúcia, em 1936, estava convencida que Fátima tinha acabado. – Contudo, passado que foi o tempo de criação material do santuário, estavam criadas as condições para a necessária adequação e elaboração dos testemunhos a que alguns chamaram Fátima II. - Deste modo logo, a mesma, se tornará alvo de sucessivos pedidos; solicitando-lhe novas versões dos testemunhos, bem como reconversões dos respetivos contextos sociais e familiares. – As “Memórias de Lúcia” constituirão, assim, um processo dirigido e controlado de adequação (reformulação, adição e, aqui e ali, omissão) dos testemunhos primevos. Transformando textos prosaicos e simplórios, em extensos e eruditos escritos doutrinários - Criar-se-ão os famosos “Segredos”, as referências ao Imaculado Coração de Maria e Sagrado Coração de Jesus e uma singular multiplicação dos fenómenos de vidência pré e, principalmente, pós 1917. - O nacionalismo que o culto desenvolveu no santuário, há-de promover e catalisar o, algo surreal, “Anjo de Portugal”. – Fátima tornar-se-á, entretanto, um santuário institucional controlado, em que o lúdico/subversivo popular (tão comum às romarias portuguesas) foi combatido desde muito cedo – Transformar-se-á, gradualmente no, hoje tão badalado, grande “altar do mundo”. Dando corpo à consagração do domínio do marianismo na Igreja. - Tornando-se importante fenómeno global; tanto social, como económico e turístico. - Afinal os santos, tal como os deuses, precisam tanto de nós como nós deles. A sua importância, é resultado, direto e proporcional, das respetivas devoções. – Fátima é, assim, o aproveitamento (em condições propícias) de um fenómeno hierofânico várias vezes verificado e repetido em diversos tempos, com diversas configurações e em diversificados cenários estruturais e conjunturais Esclareça-se, finalmente, que ao contrário do que alguns sustentam, não são conhecidos dados minimamente sustentáveis que indiciem a existência de uma potencial fraude: entenda-se algo construído, desde o início, com o propósito prévio e consciente de enganar. A

Iria, Deusa das Águas

É por demais conhecida a lenda da mártir Iria, jovem e formosa, alvo de lascivos e doentios desejos, vilmente assassinada e lançada às águas, que a transportaram carinhosamente nos braços até fundear frente a Scálabis, onde permanece ainda hoje num ignoto (mas, por isso mesmo, ainda mais maravilhoso) túmulo de alabastro, construído, com certeza, pelas potências celestes e escondido do mundo pelas águas protetoras do Tejo. Resistindo a todos os esforços para a deslocar, a mesma manifestou assim, de forma indubitável, o desejo de aí continuar, justificando portanto, em sua honra, a renomeação da velha urbe, de Scálabis para Santa Iria ou Santa Irene. Igualmente em sua honra, diz ainda a lenda, D. Dinis mandou erguer sobre o túmulo (pela última vez mostrado, a rogo da “Rainha Santa”) um consagratório padrão que, dois séculos e meio depois, a Câmara de Santarém terá mandado revestir de cantaria, colocando no seu topo a “imagem” da Santa, ainda hoje, aí, alvo de devoção popular. Dela, diz a crença popular, que se as águas das cheias alguma vez lhe chegarem aos pés... o mundo acabará! Na verdade, enquanto simbólica de todas as hilogenias, a imersão equivale no plano humano à morte e, no plano cósmico, ao dilúvio, que dissolve periodicamente o mundo no oceano primordial. Faceta que é, afinal, de uma natureza imprevisível. Uma faceta violenta e radical, com certeza, mas que "não destrói senão as formas esgotadas e consumidas". Na verdade, a imersão não corresponde, nunca, a uma extinção definitiva: apenas a uma reintegração passageira no indiferenciado, à qual se sucede, inevitavelmente, uma nova existência; seja biológica, seja virtual ou soteriológica. Pois a cada uma destas destruições de uma velha realidade, segue-se sempre um novo período, uma nova era, um novo Homem! Porque o “novo” provém do “velho” e a sua eclosão pressupõe a morte prévia do degenerado, do desgastado. As lendas diluvianas consubstanciam, portanto, a essência mítica da regeneração cíclica, modelo de revitalização das energias cósmicas, que o regresso ritual e cíclico ao limbo primordial permite acontecer. Princípio do aleatório, as águas precedem a criação, reintegrando-a depois periodicamente por absorção, fundindo-a temporariamente no caos niilista, donde há-de emergir renovada; entenda-se recriada. Desintegrando as formas, abolem a história (isto é o passado) possuindo deste modo as virtudes do esquecimento e capacidades de purificação e renascimento. Quem delas emerge, transforma-se numa nova entidade; pura, isenta de pecados, rejuvenescida. Ciclicamente, como acontece no batismo! Ou de uma forma mais perene e prolongada. A imersão mítica e dramática de Iria irá dotá-la, portanto, de uma nova natureza; renascendo numa outra dimensão, próxima, agora, da esfera do divino! Resultando de um drama de inimaginável violência (assim se potenciando a intensidade energética própria dos tempos de transição), esta adquire os atributos de uma divindade das águas, logo da regeneração e da fertilidade, naturalmente dos campos e da agricultura. Preside e regula as “cheias” que ciclicamente arrasam os campos e os fertilizam, que destroem e criam, num contexto operatório e, inclusive catársico, da morte/renascimento. Aliás, as antigas divindades da agricultura ou da fertilidade (como Cibele, Afrodite, Deméter, Atenas ou Prosérpina) com as valências lunares fortemente ligadas, presidiam quase sempre aos ciclos vitais da natureza e deste modo, aos grandes mecanismos do devir cósmico, muitas vezes cataclísmicos, algumas vezes apocalípticos. Outras como Tétis ou Nereu, Escamandro ou Aqueloo, constituíam verdadeiras divindades das águas; dos rios, das fontes, dos lagos. Mas serão as ninfas (chame-se-lhes nereides, náiades, tágides, sereias ou ondinas) divindade menores e mais próximas de uma dimensão popular, que neste contexto serão consideradas como particularmente perigosas, já que seduzem e iludem com cantares enganadores (tanto adultos, como crianças), os quais arrastam irresistivelmente para si e levam, inexoravelmente, à morte. Situação a que não serão alheias, com certeza, as tradicionais mortes por afogamento (noutros tempos bem mais frequentes) em rios, poços e lagos. Em que remoinhos e lodos sugavam corpos e membros e emaranhados de trancos depositados nos fundos se agarravam aos pés quando, aflitiva e desesperadamente, se lutava por vir à superfície. Seja como for, na intensa simbologia das epifanias das águas que os mais diversificados mitos cosmogónicos deram corpo (e os batismos cristianizaram) todas estas divindades nascem das águas onde, aliás, permanecem usualmentes. Também Iria imerge e posteriormente emerge das águas, junto a Santarém, desta forma não só optando por uma tutorização primeva, que tempos posteriores diluíram, mas igualmente renascendo; agora já como potestade meteorológica. Assim, a santa mártir, cujo drama existencial potencia a regeneração, adquire atributos de imortalidade por transubstanciação: diluída nas águas, com estas se funde, numa supressão de formas e lembranças. Desumaniza-se. Torna-se divina! Transforma-se, assim, num elemental das águas, qual “ondina”, eterna e intemporal, supostamente benéfica na dimensão assumida de divinização cristã. Afinal, o tal túmulo de alabastro, pode ser visto como a perspetivação da residência aquífera de uma divindade cristã que, sob as águas repousa, mas que, como todos os santos e santas, se mantem viva e atuante. Neste caso, aliás (como acontece igualmente, por exemplo, com São Torcato ou São Gonçalo), numa dupla e evidente valência; enquanto “imagem” e foco devocional e enquanto corpo/relíquia; que nem por ser existencialmente mítico e ignoto perde, afinal, a sua dimensão arcana e operativa. Mesmo que não se manifeste! Não se revele em episódios mais ou menos hierofânicos. Mesmo quando contingências de uma vivência fluvial, pouco impetuosa, vão deixando o pedestal fora do leito do rio. Apesar de tudo, está lá. Vigilante. Respondendo aos milenares apelos das populações ribeirinhas na apaziguação dos impulsos, quantas vezes violentos, de uma natureza nem sempre serena e aprazível! E embora virada de frente para a cidade que escolheu tutorizar e em grande parte a ignora, Iria, Senhora das Águas, é vista pelas populações como catalisando, ainda, a fertilidade dos campos que as cheias cíclicas fertilizam, mas impedindo as mesmas de assumirem, afinal, contornos catastróficos. Marca, assim, os limites da regularidade, a partir do qual o caos impõe a sua vontade. Assinalando, em última instância, o fim de uma Era e, o sequente, início de outra.

O Solstício de Verão

Numa perspectiva hierofânica que sobrevivências simbólicas e vestígios cultuais permitem ainda perceber nos nossos dias, poder-se-á dizer que o Sol tem sido, na tradição mediterrânea, identificado com ao princípio masculino e com a simbologia do pai e patriarca. Dele emana o poder fecundante, bem como um princípio da autoridade a este intimamente ligado. Mas o Sol é uma potência multifacetada; de diversificadas valências que muitas vezes surgem, até, como ambivalentes. Fecundador da terra, logo símbolo da fertilidade e potência viril. Divindade da luz, logo dador de conhecimento. Caminhante diurno e incansável, deus da beleza, facultador da harmonia e senhor do fogo. É ele que cíclica e quotidianamente imerge no mundo subterrâneo; logo é visitante assíduo do “inferno”, tornando-se assim guia dos mortos! Austero na sua impassibilidade, terrível na sua flamejante energia, os seus vestígios cultuais encontram-se hoje, especialmente, associados às tradições festivas do Natal e dos Santos Populares que herdaram a temporalidade cósmica dos solstícios. É aí, em manifestações de origem pré-cristã como as “fogueiras” ou os “lumes novos”, o “cepo de natal” ou a “missa do galo”, que se perpetuam os símbolos arcaicos das antigas teofanias solares! Aliás, o canto do galo marca, à meia-noite, a inflexão solar própria destes tempos. Assinala em apoteose o fim do período das trevas e da dominância das criaturas do caos e anuncia a luz que a alvorada há-de trazer! E ai! Se o galo canta Que á fatal hora, encantos quebrou E o poder lhes acaba! Pois estas são as épocas anuais em que o Sol atinge o seu clímax de vitalidade ou, pelo contrário, o seu estádio mais baixo de entrópica degeneração. Marcam, assim, tempos críticos de inversão de tendências que ameaçam perpetuar-se. Tempos do fim e do princípio do domínio solar; do tempo que o mesmo consubstancia e das coisas a que dá existência. Apoteose da vida Por isso, na noite dita de São João o prodígio, acredita-se, envolve tudo e todos. O maravilhoso domina. O impossível acontece. É este um tempo divinatório em que, por todo o país, se “deitavam as sortes”; seculares fórmulas adivinhatórias respeitantes ao amor e ao casamento, bem como proliferavam as crenças e práticas difusoras e propiciatórias respeitantes à fertilidade humana e da natureza. São as alcachofras, a erva-pinheira e o manjerico mas, igualmente, as “sortes do bochecho”, do “chumbo derretido” ou da “gema de ovo”! Saltar às fogueiras fomenta nesta altura a fertilidade, acredita-se por toda a Europa. Defumar as casas, purifica e esconjura dos malefícios e “coisas ruins”. Num tempo, afinal, em que por todo o lado proliferavam práticas diversas, tendentes a fertilizar pessoas, campos e animais. Comemora-se aí, deste modo, o apogeu criativo de uma natureza grávida de vida. O comportamento do astro-rei impregna aqui, o lendário popular, de um paradigma de prodígio cósmico e senciente! Sob o seu signo emergem, neste tempo, hierofanias diversas que o imaginário popular perpetua. Acreditava-se, por exemplo, em muitas zonas do país, que o Sol, ao nascer, “dava três voltas” ou “vinha a dançar”. Um pouco por todo o norte da Europa são erguidos mastros nos campos. Em seu redor dança-se, canta-se e bebe-se, durante toda a noite. Os mais jovens desencadeiam perseguições amorosas. Assim se aguarda, em orgiástica alegria, pelo nascer do dia! Também no nosso país as fogueiras dos Santos Populares constituem iniciativas comunitárias, festivas e sedutoras. Festas em que os jovens desempenham o papel dominante, também aqui se queimava ritualmente (normalmente à meia-noite), uma estaca ou uma árvore a que se chamava “mastro”, “carvalho” ou “pinheiro de São João”. Queimava-se, muitas vezes ainda, uma figura antropomorfa, feita de roupas velhas e trapos e recheada de palha. Onde se colocavam, quase sempre, bombas. Ora a noite de São João emerge destes tempos como a misteriosa “noite dos amores”; estimuladora de comportamentos sedutores e sensuais que as diligentes restrições cristãs de séculos não conseguiram, totalmente, erradicar. Por isso as divindades aqui festejadas (São João, Santo António e São Pedro) são vistas, popularmente, como “casamenteiras”. Repletas de um caráter lúbrico e sedutor que impregna todo este tempo. No caso de São João e Santo António, encarados como autênticos “rabos de saia”. Verifica-se, aliás, uma singular homogeneidade nos complexos simbólicos que persistiram através de séculos de particular intolerância. Por toda a Europa este é ainda um tempo sagrado em que o orvalho é “benfazejo” e o “benfazejo” sinónimo de virtuoso! As ervas têm virtude, a água purifica e renova, o fogo fertiliza! Fogos, fumos, orvalhos, ervas, flores e águas, bebendo do sagrado primordial, ligam-se a práticas propiciatórias diversas. Danças e cantos, interligam-se com corridas equestres e “cavalhadas” em que o cavalo assume uma função simbólica dominante. Atitudes de subversão emergem em profusão; próprias de um tempo de rotura com um quotidiano, obrigatoriamente, habitual e disciplinado. Pois este é o “tempo entre os tempos”, onde impera a desordem e a licenciosidade. E neste complexo simbólico São João irá ser identificado com a hierofania pagã da manifestação solar. Pois se Jesus, “o Novo Sol”, é feito nascer a 24 de Dezembro (numa estratégia apropriadora do Natal de Mitra) João, o Batista, é colocado seis meses antes; de acordo com a temporalidade solsticial. É por isso que o Santo é visto muitas vezes como representando o astro diurno. É o precursor. A grande luz! Enfim, outras maneiras de entender o Mundo. Com uma natureza inevitavelmente sagrada e, um cosmos desejavelmente inteligível, inevitavelmente, relacionadas.

A MULHER DO RIBATEJO : MITOS E EQUíVOCOS

Pode-se dizer-se que, tradicionalmente, o papel social da mulher do Ribatejo tem sido objeto de vários equívocos? - O equívoco, afinal, é só um: o de que os carateres de personalidade próprios da mulher ribatejana, que a tradição consagra, eram particularmente humildes e subservientes. Daí decorre, depois, todo um conjunto de erróneas implicações sociais e até culturais. Na verdade, não só tal configuração psicossocial não corresponde à realidade, como a mesma se nos revela aqui, pelo contrário, uma personagem bem mais autónoma e afirmativa; se comparada com a mulher de outras regiões. E, arriscar-me ia a dizer, com a mulher das outras regiões! Mas, se é assim, como se chegou aí? Digamos que a suposta subserviência da mulher ribatejana surge como contraponto à utilização exacerbada do “mito do campino” e decorre das supostas virilidades e destemores do “homem do Ribatejo” consubstanciado este, precisamente, na figura do campino. E se o campino foi elevado a arquétipo ribatejano no contexto dos arquétipos regionais que o Estado Novo promoveu como expressão sublimada das virtudes da raça (e, no seu caso, como símbolo do cavaleiro português de antanho que garantiu a independência nacional nos momentos difíceis de afirmação nacionalista), ao mesmo foram-lhe imputadas diversas e elevadas qualidades e virtudes que, gradualmente, se foram mitificando. E se, como diz o povo, “só pode haver um galo numa capoeira”, o estatuto da mulher irá sofrer por arrastamento inverso. Virá, então, a ser encarada como alguém particularmente passivo e obediente. Situação, que convenhamos, não correspondia, de todo, à realidade existente. Como poderíamos então, em termos de estatuto social, caracterizar a mulher do Ribatejo? Esclareça-se que falamos, essencialmente, das “mulheres do campo” que, durante séculos, marcaram, social e laboralmente, toda a região; nomeadamente o Vale do Tejo a que, em tempos passados, se chamava Borda d´Água. Trabalhadoras jornaleiras, como o homem. Que, como este, tinham a sua praça todas as semanas, onde iam vender a sua força de trabalho. Aí, discutiam preços e condições com capatazes e proprietários. Daí, saíam para trabalhar, afastadas dos maridos, às vezes por dezenas de quilómetros. Labutando, toda a semana, lado a lado com outras mulheres (ou, até, com homens) de outras localidades. Pessoas que, recorrentemente, tinham de reafirmar (alto e bom som) a sua fama de boas trabalhadoras; pois disso dependiam trabalho e salário. Algumas, ainda, eram capatazas, habituadas a comandar grupos de trabalhadoras, servindo de porta-voz perante o feitor ou o proprietário, reivindicando remunerações ou condições de trabalho. Pessoas de opiniões firmes e decididas, extrovertidas e assertivas; expressando e exigindo maior autonomia social. Eram as mulheres do campo, camponesas morenas de corpo robusto e pêlo na venta, de sonoras gargalhadas e língua afiada, temperadas da geada e do calor da lezíria. E até onde vai, afinal, essa autonomia? Não existe, aqui, uma inversão social, esclareça-se. O homem continua a ser o chefe de família e a exprimir, de forma algumas vezes pública e violenta, esse estatuto. Mas a relação com a mulher e os filhos sofre de inegáveis caracteres subversivos, expressos familiar e comunitariamente. Digamos que a imposição dessa liderança é, neste caso, aceite menos pacificamente. O come e cala de tantas outras zonas do país é aqui, diversas vezes, substituído pelo, mais problemático, come, …e não cala! E de que maneira isso se refletia no dia-a-dia destas pessoas? Ao contrário do que emana da literatura regionalista, elevadora do homem ao tal papel de arquétipo regional (feito de virtudes várias e ausência de defeitos), pode dizer-se que a mulher ocupava, no Ribatejo, uma posição de género significativamente menos subordinada que noutras zonas do território nacional! O seu papel é mais marcante, tanto social, como profissionalmente! Proletária e jornaleira, a mesma emerge, aqui, das brumas de uma história local e regional (em grande parte por fazer), como disposta a liderar causas sociais e comunitárias diversas. Por exemplo, enquanto rapariga, na reivindicação do direito a escolher o conjugue ou, como mulher, na relação com o padre e a Igreja. Nestas situações e noutras, a mulher reivindica condições de ação e opinião muito pouco comuns na tradicionalidade feminina portuguesa. Nas atividades lúdicas, como as danças e os cantares, o seu papel surge significativamente valorizado. Tanto nas desgarradas (competições de improviso poético extremamente populares), como até em certas danças mais competitivas como o bailarico ou o fandango, parte considerável das rivalidades locais, explícitas ou implícitas, eram (ao contrário do que se pensou durante décadas), expressas numa perspectiva homem/mulher! Confirma-se, então, que a mulher também dançava o fandango? Naturalmente. De facto, não só parecem ter sido dançarinas espanholas que, no século XVIII, alimentaram especialmente a popularidade desta dança nos teatros lisboetas como, inclusive, disseminado já um pouco por todo o país, as descrições efetuadas por autores portugueses e estrangeiros, durante a segunda metade de setecentos, apresentam-no, quase sempre, como dançado entre homem e mulher, em pé de igualdade. Mais recentemente (de fins do século XIX até aos nossos dias) e mesmo sem a realização de um qualquer estudo global, tanto os estudos monográficos locais como as pesquisas minimamente sustentáveis (a propósito ou não) desenvolvidas por diversos grupos do Ribatejo constituem, disso, prova cabal. Como se compreende, então, que muitas representações folclóricas só recentemente, tenham aceite a participação feminina? É que, dentro do contexto que falámos, a identificação mítica do fandango com o homem do Ribatejo, dotado este dos tais caracteres psíquicos excecionais de força, vigor, destemor e virilidade, tornava naturalmente interdita, à mulher, a partilha de valências de caráter que lhe eram atribuídas. A sublimação mítica idealizou, aliás, cenários pictóricos em que o campino, dançando o fandango, seduz e conquista a mulher; completamente rendida aos encantos do bailador. Na verdade, esta interpretação; pelo carácter restritivo e determinista das complexidades da natureza humana, pelo papel estritamente passivo (e de alguma forma servil) da mulher e pela redução de um sentimento à mera avaliação de um desempenho artístico, constitui, em rigor, um autêntico disparate! Não obstante, persistiu até hoje. E foi criando, contra todas as evidências, um insensato senso-comum. E porque é que nunca se percebeu isto? Essa é, afinal, a grande questão: - Primeiro porque durante décadas ninguém estudou o Ribatejo. Nem sequer o próprio campino foi objeto de estudo. Pelo contrário, era apresentado, apenas, como um símbolo mítico regionalista: alguém que tinha nascido já adulto e montado: cavalgando, garbosamente, pela vastidão da lezíria. Dito de outra maneira, o Ribatejo era o campino e, este, o “Homem do Ribatejo”. O fandango era sua dança. Os touros, o seu desígnio. - E, convenhamos, quando nas décadas de oitenta/noventa isso foi sendo, em parte, ultrapassado, já tais questões de género não eram tão evidentes, O modelo laboral tradicional tinha-se já, em grande parte, transformado. - Depois, ainda, porque os ranchos folclóricos, na sua grande parte, não possuem nem as capacidades técnicas nem sequer interesse especial no estudo das condições de género. - E, finalmente, porque os mitos exercem uma ação desertificadora em seu redor. A mitificação positiva do homem arrastou, afinal, uma gradual mitificação negativa da mulher. E os mitos, após, implantados, são extremamente difíceis de extirpar. É muito grave se tal equívoco persistir no tempo? Bom, para já, é uma cedência ao erro e um atropelo à verdade. Naturalmente injusto para os registos memoriais da mulher ribatejana; cuja vida constituía nesses tempos, isso sim, um paradigma épico de esforço e superação. E, principalmente, não contribui em nada (muito pelo contrário) para melhor perceber a realidade social e cultural de género, no nosso país e nossa região. Afinal, só amamos aquilo que conhecemos. E só conhecemos aquilo a que damos suficiente importância, para o olhar com olhos de ver. Pode-se dizer-se que, tradicionalmente, o papel social da mulher do Ribatejo tem sido objeto de vários equívocos? - O equívoco, afinal, é só um: o de que os carateres de personalidade próprios da mulher ribatejana, que a tradição consagra, eram particularmente humildes e subservientes. Daí decorre, depois, todo um conjunto de erróneas implicações sociais e até culturais. Na verdade, não só tal configuração psicossocial não corresponde à realidade, como a mesma se nos revela aqui, pelo contrário, uma personagem bem mais autónoma e afirmativa; se comparada com a mulher de outras regiões. E, arriscar-me ia a dizer, com a mulher das outras regiões! Mas, se é assim, como se chegou aí? Digamos que a suposta subserviência da mulher ribatejana surge como contraponto à utilização exacerbada do “mito do campino” e decorre das supostas virilidades e destemores do “homem do Ribatejo” consubstanciado este, precisamente, na figura do campino. E se o campino foi elevado a arquétipo ribatejano no contexto dos arquétipos regionais que o Estado Novo promoveu como expressão sublimada das virtudes da raça (e, no seu caso, como símbolo do cavaleiro português de antanho que garantiu a independência nacional nos momentos difíceis de afirmação nacionalista), ao mesmo foram-lhe imputadas diversas e elevadas qualidades e virtudes que, gradualmente, se foram mitificando. E se, como diz o povo, “só pode haver um galo numa capoeira”, o estatuto da mulher irá sofrer por arrastamento inverso. Virá, então, a ser encarada como alguém particularmente passivo e obediente. Situação, que convenhamos, não correspondia, de todo, à realidade existente. Como poderíamos então, em termos de estatuto social, caracterizar a mulher do Ribatejo? Esclareça-se que falamos, essencialmente, das “mulheres do campo” que, durante séculos, marcaram, social e laboralmente, toda a região; nomeadamente o Vale do Tejo a que, em tempos passados, se chamava Borda d´Água. Trabalhadoras jornaleiras, como o homem. Que, como este, tinham a sua praça todas as semanas, onde iam vender a sua força de trabalho. Aí, discutiam preços e condições com capatazes e proprietários. Daí, saíam para trabalhar, afastadas dos maridos, às vezes por dezenas de quilómetros. Labutando, toda a semana, lado a lado com outras mulheres (ou, até, com homens) de outras localidades. Pessoas que, recorrentemente, tinham de reafirmar (alto e bom som) a sua fama de boas trabalhadoras; pois disso dependiam trabalho e salário. Algumas, ainda, eram capatazas, habituadas a comandar grupos de trabalhadoras, servindo de porta-voz perante o feitor ou o proprietário, reivindicando remunerações ou condições de trabalho. Pessoas de opiniões firmes e decididas, extrovertidas e assertivas; expressando e exigindo maior autonomia social. Eram as mulheres do campo, camponesas morenas de corpo robusto e pêlo na venta, de sonoras gargalhadas e língua afiada, temperadas da geada e do calor da lezíria. E até onde vai, afinal, essa autonomia? Não existe, aqui, uma inversão social, esclareça-se. O homem continua a ser o chefe de família e a exprimir, de forma algumas vezes pública e violenta, esse estatuto. Mas a relação com a mulher e os filhos sofre de inegáveis caracteres subversivos, expressos familiar e comunitariamente. Digamos que a imposição dessa liderança é, neste caso, aceite menos pacificamente. O come e cala de tantas outras zonas do país é aqui, diversas vezes, substituído pelo, mais problemático, come, …e não cala! E de que maneira isso se refletia no dia-a-dia destas pessoas? Ao contrário do que emana da literatura regionalista, elevadora do homem ao tal papel de arquétipo regional (feito de virtudes várias e ausência de defeitos), pode dizer-se que a mulher ocupava, no Ribatejo, uma posição de género significativamente menos subordinada que noutras zonas do território nacional! O seu papel é mais marcante, tanto social, como profissionalmente! Proletária e jornaleira, a mesma emerge, aqui, das brumas de uma história local e regional (em grande parte por fazer), como disposta a liderar causas sociais e comunitárias diversas. Por exemplo, enquanto rapariga, na reivindicação do direito a escolher o conjugue ou, como mulher, na relação com o padre e a Igreja. Nestas situações e noutras, a mulher reivindica condições de ação e opinião muito pouco comuns na tradicionalidade feminina portuguesa. Nas atividades lúdicas, como as danças e os cantares, o seu papel surge significativamente valorizado. Tanto nas desgarradas (competições de improviso poético extremamente populares), como até em certas danças mais competitivas como o bailarico ou o fandango, parte considerável das rivalidades locais, explícitas ou implícitas, eram (ao contrário do que se pensou durante décadas), expressas numa perspectiva homem/mulher! Confirma-se, então, que a mulher também dançava o fandango? Naturalmente. De facto, não só parecem ter sido dançarinas espanholas que, no século XVIII, alimentaram especialmente a popularidade desta dança nos teatros lisboetas como, inclusive, disseminado já um pouco por todo o país, as descrições efetuadas por autores portugueses e estrangeiros, durante a segunda metade de setecentos, apresentam-no, quase sempre, como dançado entre homem e mulher, em pé de igualdade. Mais recentemente (de fins do século XIX até aos nossos dias) e mesmo sem a realização de um qualquer estudo global, tanto os estudos monográficos locais como as pesquisas minimamente sustentáveis (a propósito ou não) desenvolvidas por diversos grupos do Ribatejo constituem, disso, prova cabal. Como se compreende, então, que muitas representações folclóricas só recentemente, tenham aceite a participação feminina? É que, dentro do contexto que falámos, a identificação mítica do fandango com o homem do Ribatejo, dotado este dos tais caracteres psíquicos excecionais de força, vigor, destemor e virilidade, tornava naturalmente interdita, à mulher, a partilha de valências de caráter que lhe eram atribuídas. A sublimação mítica idealizou, aliás, cenários pictóricos em que o campino, dançando o fandango, seduz e conquista a mulher; completamente rendida aos encantos do bailador. Na verdade, esta interpretação; pelo carácter restritivo e determinista das complexidades da natureza humana, pelo papel estritamente passivo (e de alguma forma servil) da mulher e pela redução de um sentimento à mera avaliação de um desempenho artístico, constitui, em rigor, um autêntico disparate! Não obstante, persistiu até hoje. E foi criando, contra todas as evidências, um insensato senso-comum. E porque é que nunca se percebeu isto? Essa é, afinal, a grande questão: - Primeiro porque durante décadas ninguém estudou o Ribatejo. Nem sequer o próprio campino foi objeto de estudo. Pelo contrário, era apresentado, apenas, como um símbolo mítico regionalista: alguém que tinha nascido já adulto e montado: cavalgando, garbosamente, pela vastidão da lezíria. Dito de outra maneira, o Ribatejo era o campino e, este, o “Homem do Ribatejo”. O fandango era sua dança. Os touros, o seu desígnio. - E, convenhamos, quando nas décadas de oitenta/noventa isso foi sendo, em parte, ultrapassado, já tais questões de género não eram tão evidentes, O modelo laboral tradicional tinha-se já, em grande parte, transformado. - Depois, ainda, porque os ranchos folclóricos, na sua grande parte, não possuem nem as capacidades técnicas nem sequer interesse especial no estudo das condições de género. - E, finalmente, porque os mitos exercem uma ação desertificadora em seu redor. A mitificação positiva do homem arrastou, afinal, uma gradual mitificação negativa da mulher. E os mitos, após, implantados, são extremamente difíceis de extirpar. É muito grave se tal equívoco persistir no tempo? Bom, para já, é uma cedência ao erro e um atropelo à verdade. Naturalmente injusto para os registos memoriais da mulher ribatejana; cuja vida constituía nesses tempos, isso sim, um paradigma épico de esforço e superação. E, principalmente, não contribui em nada (muito pelo contrário) para melhor perceber a realidade social e cultural de género, no nosso país e nossa região. Afinal, só amamos aquilo que conhecemos. E só conhecemos aquilo a que damos suficiente importância, para o olhar com olhos de ver.

A interculturalidade e a Escola

Vivemos numa sociedade que tende para a globalização, não só económica e comunicacional mas, ainda, de valores e de princípios, que tendem, cada vez mais, para universais e humanistas. Mas, tender não é necessariamente chegar! Muito longe disso! Afinal, diferenças étnicas (consubstanciadoras de discriminações várias) subsistem, naturalmente; perenes em termos físicos e de mudança lenta em termos culturais. E assim irão continuar! È, portanto imperioso, aprendermos a viver com grupos e indivíduos portadores de valores e costumes manifestamente diferentes dos nossos. Na Sociedade e na Escola! E o primeiro aspeto que devemos ter em conta, é que se trata de uma problemática complexa; De complexas causas, de complexas motivações atuais e, naturalmente, de complexas, abrangentes e delicadas soluções. Comecemos por nos debruçar sobre as estruturas subjacentes às atitudes de intolerância, tanto na sua componente cognitiva (como se sabe, em grande parte estereotipada), até à social (não menos importante) passando, igualmente, por uma vertente emocional omnipresente e, frequentemente, culpabilizadora. Como se sabe, os estereótipos pressupõem uma simplificação da realidade social, simbolizando-a e tornando-a, funcionalmente, mais percetível e identificável. Por exemplo, em termos de identificação dos grupos humanos, a estereotipação tende a entendê-los como de um indivíduo só se tratasse, sem reconhecer as, naturais diferenças (ou, mais rigorosamente as infinitas diferenças), das personalidades que os constituem. O caso mais extremo desta categorização, pode ser exemplificado pelo pensamento dicotómico; isento de matizes e situações intermédias. São brancos ou pretos, bons ou maus, amigos ou inimigos, “nós” ou os “outros”. Nós e os “Outros” Assim, um eventual estigma envolve todos os indivíduos do grupo considerado, não tendo em conta diferenças de idade, sexo, estatuto social, formação cultural ou quaisquer outras. Correspondem a uma visão da realidade muitas vezes irracional (emotiva, se quisermos), mas com que deparamos frequentemente; e que, de alguma forma, envolve o nosso quotidiano. Esta categorização bipartida leva-nos, depois, a identificar os outros por uma perceção simplista e arquétipa de um qualquer aspeto físico (principalmente) ou cultural, ignorando-se porém, de forma muitas vezes ostensiva, as restantes particularidades. Tal atitude, discriminatória já, potencia-se depois, especialmente quando se funde com outros aspetos de carácter (por exemplo, quando o indivíduo pertence a um grupo com menor poder ou prestígio) ou emocionais: por exemplo, quando o mesmo indivíduo ou grupo são vistos como uma ameaça. Ensaiemos, então, um esboço de síntese caracterológica das razões psicossociais que podem levar a incrementar estas visões discriminatórias, aumentado o risco da intolerância face aos outros. - Centrar a nossa atenção nas diferenças entre nós e os outros, tende a exagerar tais diferenças em detrimento das semelhanças. - A eclosão de dois fatores considerados potencialmente ou efetivamente negativos (por exemplo a chegada de emigrantes e o incremento da droga, da criminalidade ou até do desemprego) tende a relacionar os mesmos num contexto absoluto e linear de causa e efeito. - Os próprios estereótipos guiam a nossa interpretação da realidade e criam memórias seletivas dos acontecimentos, o que dificulta a sua superação. Digamos que, os dados positivos são considerados como exceção, os negativos como prova! - Finalmente, mesmo que venhamos a considerar positivamente um qualquer indivíduo doutro grupo/cultura, o estereótipo impede que generalizemos essa apreciação. Será visto, mais uma vez, como uma exceção. Uma pessoa por quem temos estima, não porque, mas,... apesar de! Na verdade, grande parte da nossa intolerância resulta de situações essencialmente emocionais que, embora possamos dizer não resistiriam a uma simples análise metodológica, dominam e persistem, numa irracionalidade muitas vezes cega mas, nem por isso, menos eficaz! Por exemplo, os “bodes expiatórios”, decorrentes da culpabilização dos “Outros” face a situações vigentes de tensão e frustração ou, até, de instabilidade social ou económica. A história recente do Povo Judeu, numa Europa supostamente humanista, é bem paradigma, lamentável, de tal pressuposto. A isto podemos juntar a necessidade de afirmação do “nosso grupo” face ao “outro”, ao estranho, reforçando a nossa coesão, mas igualmente o nosso estatuto interno e, obviamente a efetiva integração no mesmo. E aqui, podemos dizer que existem dois vetores que tendem a potenciar esta atitude: por um lado o reforço da nossa identidade construída assim por oposição aos outros, por outro, a criação do inimigo externo tornado, assim, o tal ”bode expiatório”; responsável por todos os males e mais alguns. Situação que não deixa sequer, muitas vezes, emergir a natural empatia e solidariedade para com o marginalizado e discriminado. E, o mais paradoxal, é que nos baseamos numa perceção pretensamente ética, acreditando (querendo acreditar) que o outro é o único (ou principal) culpado da sua situação. São, portanto, atitudes deformadas da perceção da realidade que nos levam, muitas vezes, a encarar os outros como inferiores ou piores. Deformações que resultam de manifestas expressões de interesse e solidariedade grupal, do desconhecimento, do horror à diferença, quantas vezes... do medo! Atitudes preconceituosas, que servem, frequentemente, para legitimar diferenças grupais de estatuto e poder. Foi, aliás, considerando os escravos e os “selvagens” como “naturalmente inferiores”, que se justificaram durante séculos, genocídios e expropriações de bens, de territórios e, até, da própria dignidade humana. A escola e a diferença De tudo isto se deduz que não basta abrir as nossas escolas a outras culturas étnicas. Nem incluir elementos culturais que lhe são próprios, no currículo escolar. Nem sequer (e dando já de barato o complexo de dificuldades associadas a esta estratégia) abrir a Escola à Sociedade em que esta está inserida. É preciso tudo isso! Mas, convenhamos, bem mais do que isso! È preciso que o docente seja mais que um papagueador do programa. Mais que um simples catalisador, mesmo que fluente, da transmissão do conteúdo programático aos discentes. Que não se reduza a reconhecer a presença de outras realidades culturais na sala de aula. Que não as encare como expressões pitorescas de singularidades étnicas. Que não as veja como variantes do modelo padrão existente entre nós. Que não trate os seus portadores como uma espécie de atrações circenses, nem expresse, por eles, um paternalismo quantas vezes humilhante! Mesmo que bem-intencionado! É preciso que esteja sensibilizado para a naturalidade da diferença, que o etnocentrismo tantas vezes subverte, implícita ou explicitamente. Que veja na diferença não um obstáculo, mas um estímulo! Não uma contradição, mas um enriquecimento dos valores patrimoniais em presença! Que perceba que as diferenças entre as culturas (que os diferentes grupos humanos veiculam), são profundamente influenciadas pelo contexto social e pela transitoriedade histórica. Por opções de progresso e por diferenças de oportunidade. Que, por exemplo, já na África existiam grandes civilizações, capazes de erigir construções ciclópicas (consideradas, hoje, maravilhas do mundo), ainda os europeus corriam atrás de bisontes com machados de pedra! Estará então dotado de condições psicossociais para vir a desenvolver mecanismos pedagógicos e vivenciais que permitam aos alunos tolerar melhor a incerteza (que é nossa companheira inseparável no mundo de hoje), de forma a fazer consolidar identidades em formação sem necessidade de o fazer contra quem quer que seja. Promovendo e estimulando contactos intergrupais e interpessoais. De forma a descobrir que somos, ao mesmo tempo, iguais e diferentes: homens e mulheres, europeus e africanos, “gadjés” e ciganos, cristãos e muçulmanos, indivíduos com ou sem “necessidades especiais”. Vivendo a tolerância como valor; nunca como obrigação. Mesmo que revestida do prestígio humanista contemporâneo. Estará, então, em condições de ajudar a fazer de uma Escola com todos, uma Escola para todos. Ou, se quisermos, uma Escola de todos! Assim lhe sejam fornecidas condições instrumentais, temporais e, principalmente, psicossociais. De que, hoje, tanto carece.