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sexta-feira, 3 de março de 2017

Quebrar vasilhas pelo Entrudo





O modelo entrópico da temporalidade arcaica, confere à existência uma necessidade de recriação ritual, condição única para uma indispensável regeneração do tempo e da vida. Inspirando-se no crescimento e decrescimento do domínio diurno do Sol e no apogeu e declínio lunar, paradigmas de uma degeneração cíclica, ou ainda na sazonalidade vegetativa, feita de crescimento, maturação e morte, sempre as conceções cosmogónicas do Homem foram entendidas como modelo da recriação periódica do Cosmos.
Poder-se-á dizer, então, que para as conceções ideológicas arcaicas, mais que quaisquer outras, todo o mundo é, como diz o poeta, especialmente “composto de mudança”!
Mudança que exige uma imersão cíclica no caos, no limbo primevo! Condição purificadora indispensável para um novo começo. Começo gerado, em sentido estrito, a partir do nada absoluto!
A anulação ritual, cíclica e radical, gera assim um novo mundo e uma nova existência, numa dimensão perpétua do devir.
Mas a perfeição do começo exige a destruição do velho. A transmutação exige a dissolução das formas existentes, por imersão no caos social e cultural. Orgias e subversões, saturnais e bacanais, inversões da ordem e desregramentos sociais. Em qualquer dos casos, tanto no plano cósmico como vegetal ou humano, trata-se de um retorno à unidade primordial.
Destruição inevitável que é também irreversível! Um novo mundo torna-se possível (apenas e só) através de um regresso às origens, aos primórdios, que o mito consagra e o rito permite.

De diversas formas a tradição consagrou esta rejeição do tempo passado, velho e gasto, com o inverno ou com a morte do sol ou do ano, identificado.
A morte simbólica de uma figura antropomorfa (efigie ou homem transvertido) através do ato ritual de “enterrar”, “queimar”, afogar ou despedaçar é quase omnipresente.
Bonecos, usualmente de palha, eram em tempos idos queimados afogados, expulsos e destruídos, apoteótica e alegremente, durante os grandes festivais de inverno. Manifestações de “caretos” ou “chocalheiros”, “serrar a velha”, “enterrar o entrudo”, “queimar o judas” ou “queimar/chocalhar as comadres” constituem reminiscências ancestrais onde tais personagens ainda recentemente eram (e, nalguns casos pontuais, ainda são) solenemente destruídos, simbolizando-se assim a morte do “ano velho”; paradigma de uma existência gasta e degenerada.
Da mesma forma, a conceção de que o barulho, só por si, é susceptível de esconjurar males e malefícios radica numa tradição milenar que faz parte do complexo cultural mediterrâneo.

Naturalmente, o Carnaval irá herdar estas práticas. Em Almeida, tal como em Almofala-Castro D’Aire ou na povoação bragançana de Pudence, era nessa altura que os rapazes corriam desenfreados pelas ruas agitando os inevitáveis chocalhos e fazendo uma barulheira infernal.
Em Monsanto da Beira, Fevereiro era o “mês da capadela” em que a “canalha miúda” andava pela rua com grandes chocalhos fazendo um grande alarido
Em Pitôes das Júnias-Montalegre, os “farrapões”, homens e moços vestidos de andrajos (utilizando máscaras de papelão e portadores igualmente de chocalhos e campainhas), tinham por hábito, nessa altura, correr pelas ruas em desatino e proceder a impertinências várias que só a especial permissividade carnavalesca tornava possível

Mas o mesmo objetivo podia, ainda, ser alcançado através da destruição ritual de algo que simbolizasse o período que terminava tal como é visível nalgumas versões das “caqueiradas” ou no “jogo da panela”.
Sabe-se como o quebrar de vasilhas de barro possuía, igualmente, nas sociedades tradicionais o sentido, simbólico, da destruição que antecede uma nova etapa de existência.
Quebrar uma vasilha de barro, ou de vidro, cheia de óleo ou vinho, corresponde tradicionalmente ao terminar simbólico de um período e ao início do outro. A ideia ritual subjacente a este acto conjuga, de alguma forma, a atitude de destruição necessária à criação, com a ação cerimonial de aspersão líquida; símbolo do caos donde emerge a ordem.
Por isso o aspergir de vinho se perpetuou como símbolo festivo de um novo período ou tarefa. Veja-se o acto de beber vinho na entrada de cada ano (individual, religioso ou civil) ou em qualquer período inaugurativo. O surgimento do espumante permite afinal, funcionalmente, a ação de aspersão, sem constituir um óbice, determinante, à libação.

Por isso, nalgumas zonas do país, a tradição mandava que, no fim do carnaval, se quebrassem sistematicamente as quartas e talhas velhas ou partidas (símbolos da carne e azeite que tinham contido), entendido, isto, como um rito de passagem para um novo tempo anual; uma nova quadra do calendário eclesiástico.
Era o caso das “caqueiradas”! Telhas e pedras aquecidas atiradas altas horas da noite assustando e queimado os velhos aí residentes, constituindo atitudes de completa afronta da privacidade e dignidade dos outros,
Nalguns casos o costume parece corresponder a uma versão híbrida em que a dimensão do jogo não está, ainda bem definida. É o que se verificava em Murça no, ali denominado, “domingo da caqueirada”, em que era tradição as pessoas transportarem para a rua toda a louça de barro imprestável, e aí começarem a atirá-la (leia-se jogá-la), uns contra os outros, até a desfazer em cacos.

Daí, ou de algo parecido, pode ter evoluído o padrão lúdico em presença em muitas zonas do país, em que a dita destruição ritual dos recipientes de barro deu origem ao popular “jogo da panela”; também dito da “cântara”, da “quarta” ou do “quartão”,
Jogo que animava jovens e adultos pelo estrépito da cacaria, quando algum mais descuidado ou azarado a deixava escapar por entre os dedos, sujeitando-se depois à chacota dos companheiros.
E dava corpo, afinal, a um dos costumes mais populares do nosso “entrudo” de antanho.
Inclusive no Ribatejo.



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