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quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Entrevista concedida ao Jornal Correio do Ribatejo, de Santarém, acerca do "Manifesto contra a vinda do Papa a Fátima" em 2017.



- O bispo da Diocese de Leiria/Fátima afirmou que a petição contra a visita do papa à comemoração do centenário das aparições não lhe tira o sono.
Não conheço a dificuldade do Bispo de Leiria para cair, quotidianamente, nos braços de Morfeu. Mas acredito que, de qualquer maneira, não perca o sono por isso.
Aliás, assumida como algo “contra”, esta é uma ação que provavelmente só favorecerá a Igreja. E a fará desempenhar, mesmo que passivamente, o papel de vítima.
Suponho que não é isso que se pretende, mas…  tenderá sempre a criar uma certa ideia de intolerância.
- Mas, qual a sua opinião sobre o referido manifesto?
Simplesmente, a seguinte: qualquer pessoa tem o direito de ser crente: cristão, hindu, muçulmano, confucionista ou afim.
Qualquer crente tem o direito de acreditar num qualquer dogma, episódio taumatúrgico, hagiológico ou pressuposto metafisico; doutrinário ou não.
E, naturalmente, de assentar, aí, o seu foco devocional.
Qualquer conjunto de crentes tem o direito de se organizar. De realizar os seus cerimoniais. De convidar, quem quiser, a partilhar os mesmos.
Mais, ainda, se for o seu líder institucional e espiritual.
- Mas, sendo este um Papa que se tem apresentado como progressista não era de esperar que tivesse outra postura?
Ser um papa que vem caracterizando o seu pontificado por ideias bem menos conservadoras (incidindo, afinal, em situações sociais que o liberalismo atual tornou particularmente desfasadas do conservadorismo doutrinário cristão), não implica que o mesmo possua qualquer posição diferente da “entourage” católica no que respeita a Fátima.
Primeiro, porque Fátima é hoje a grande vanguarda das ações pastorais (e não só) da Igreja, corporizando, no culto da Senhora de Fátima, uma singular experiência cultual universal.
Segundo porque, tanto os fenómenos de Fátima como qualquer outro dogma católico, assentam em pressupostos de consagração que se baseiam, quase estritamente, na fé; sendo, naturalmente, exteriores a qualquer eventual necessidade de autenticação científica.
Insuscetíveis, assim, da sua validação. Logo, da sua invalidação.
Deste modo, as interpretações científicas, nesta área do pensamento, não são partilhadas, (nem poderão ser), pelos cristãos; seja o mais humilde dos crentes, seja o próprio sumo pontífice. Pouco sensíveis afinal (de diferentes modos mas idênticas naturezas) a outras formas de entender a realidade.
- Poder-se-á dizer que se exige uma discussão pública dos milagres de Fátima?
Estudar Fátima pode ter como resultado diversas conclusões naturalmente diferentes daquelas que a Igreja partilha. Foi aliás o que (dir-se-ia, inevitavelmente) aconteceu com o estudo que realizei “Videntes e confidentes; Um estudo sobre as aparições de Fátima”.
Discutir os testemunhos, razões, ambientes, condições políticas, implicações sociais e psíquicas, enquadramentos culturais (e por aí adiante) podem e devem fazer-se. E, aliás, têm-se feito pouco.
Não existem, afinal, assuntos tabus.
Agora discutir os “milagres”…
Poder-se-á até dizer, em rigor, que os milagres não se discutem!
Face às condições atrás citadas (ou outras) interpretam-se cientificamente ou assumem-se intuitivamente como algo que está para lá (ou, se quisermos, para cá) das análises metodológicas e científicas. Apenas isso!
Podemos até ensaiar argumentos de uma e outra razão e sustentação. É sempre contudo, em grande parte, uma conversa de surdos.
São outras formas de perceção. Mais intuitivas, mais emocionais; às vezes psicossomáticas.
Não são confrontáveis com as validações dos padrões culturais que a ciência estuda.
E vice-versa.
- Seja como for, acha que a vinda deste Papa, hoje, a Fátima, se justifica?
É algo que devemos perguntar aos católicos.
Por mim, não vejo porque não. É o centenário daquilo que, para a Igreja é, hoje, o “grande altar do mundo”. Por menos, já outros nos visitaram.
Agora, o que eu acho, sim, é que não nos compete intrometer na vida de uma organização religiosa (privada, esclareça-se) que, como é natural, assenta (como todas as outras) os seus pressupostos doutrinários em acontecimentos (episódicos ou não) interpretados taumaturgicamente e, naturalmente, suportados pela fé.
Na verdade, as aparições de Fátima não são, em rigor, “imperativos de fé”; leia-se dogmas essenciais de fé. Mas para muito boa gente, neste mundo, funcionam como tal.
E todos os crentes católicos (como todos os outros; cristãos ou não) devem-nos merecer o maior respeito.
É que a nossa sociedade não funciona (em nenhuma dimensão, esclareça-se) apenas na vertente científica. Muito longe disso.
É um facto que, nela, a ciência vem adquirindo prestígio acumulado. Mas isso não impede que a maioria esmagadora da população mundial se continue a assumir como crente.
Desta e doutras religiões.
- Pode dizer-se que Fátima é resultado de um logro orquestrado pela Igreja?
Suponho que não! Pelo menos não foi essa a conclusão a que cheguei quando a estudei.
Acho que se tratou, sim, do natural aproveitamento de um dos inúmeros fenómenos de visionação/alucinação que surgem preferencialmente em épocas de grande dramatismo social e político como aconteceu, precisamente, no início de novecentos, com a participação de Portugal na Grande Guerra e com o conflito entre a Igreja e o Governo Republicano.
Agora, mais importante que isso, é perceber-se que (desde que canonizados) não existem dogmas ou episódios transcendentais falsos em qualquer religião.
Por definição, são todos verdadeiros. Porque são sagrados e, em última instância, fruto da ação e vontade de Deus.
Isto na perspetiva do crente; como não podia deixar de ser.
Dito de outra maneira: mesmo que consideremos, um dado caso, como um embuste ou orquestração (e independentemente das intenções manifestas e das consciências em presença) a partir do momento em que o mesmo é aceite como sagrado/divino torna-se, literalmente, verdadeiro.
E pode passar a constituir-se como foco operativo devocional e divinatório.
Como uma erupção do sagrado na teia social do profano. Uma hierofania; se não, uma epifania divina.
Mais ainda: sem citar exemplos para não ofender ninguém, é quase inevitável que os grandes dogmas religiosos (desta, como de qualquer outra religião), assentem em fundamentos bem mais frágeis, ainda, que os de Fátima!
Apenas são mais antigos, estão já prestigiados pela tradição, integrados doutrinariamente e adequados por uma hagiologia milenar.
Tornaram-se verdades absolutas que enformam os nossos referenciais místicos e míticos e que hoje não podemos e, em grande parte não queremos, questionar.
Afinal, a possibilidade de os analisar de uma forma minimamente sistemática é agora, por razões óbvias, praticamente nula.
Pois, deles não temos acesso aos documentos originais (nem nada que se pareça) ao contrário do que, apesar de tudo, acontece com Fátima.
- Mas os subscritores do manifesto falam em enganar o povo?
Não gostaria de factualizar a questão mas, o argumento de “engano do povo” pode, como dissemos, ser afeto a todos os dogmas religiosos (considerados, esses sim, como imperativos de fé) desta ou de outra qualquer religião.
A nossa opinião sobre isso é naturalmente respeitável mas, é apenas isso; uma opinião.
E se o nosso critério forem os imperativos da ciência, estes devem ser considerados como “um” critério; não “o” critério.
Se “o” fosse, então todos os fundamentos de qualquer religião considerada seriam, inevitável  e obrigatoriamente,  postos em causa.
Mesmo que não cristãos!
E, se cristãos, mesmo que exteriores a Fátima.
A este nível percepcional (volto repetir) as razões da ciência não são aplicáveis.
A não ser, por exemplo, as razões das ciências sociais como a antropologia do sagrado ou a sociologia das religiões. Mas, a estas, não compete fazer juízos de valor sobre as sustentações doutrinárias mas, sim, conhecer os tempos e os modos das construções e evoluções dos sistemas religiosos.
- Acha que persiste um conflito entre a ciência e as religiões?
Já houve bem mais. Persistirá sempre, claro. Mas hoje (no nosso país, esclareça-se) vivemos numa sociedade, cujo senso-comum é claramente de tolerância; pelo menos como pressuposto.
Como cientista social defendo, naturalmente, um incremento crescente da ciência.
Mas, igualmente, o direito de cada um acreditar naquilo que considera mais adequado. Sem pressões, nem paternalismos. E, convenhamos, prefiro uma sociedade multivalente a uma  estritamente homogénea.
Afinal, as religiões cumprem papéis sociais e psicossociais bastante importantes para muitos.
E até porque, podendo hoje a ciência, sustentar técnica e digitalmente, grande parte das atividades humanas, nem sempre (como os últimos tempos têm mostrado), é suficientemente dotada de um necessário e suficiente humanismo.
Diria mesmo mais; tenho muitas dúvidas que um hipotético (e, naturalmente, improvável) desaparecimento das religiões, gerasse uma sociedade melhor.
Tenderia, de alguma forma, a constituir-se uma ditadura do pensamento científico. E ditaduras, sejam elas quais forem, é algo que dispensamos.

- Se tivesse que deixar uma ideia final sobre este assunto, o que diria?
Tentaria resumir o aspeto essencial do mesmo, de forma o mais simples possível.
Considerando que, se a defesa de um pressuposto dogmático (naturalmente não compatível com a dúvida metódica e a racionalidade analítica associada) constituir um logro, então toda a Igreja e todas as organizações religiosas (assentes que são nos mais diversos dogmas, feitos doutrina ou não) terão de ser sujeitas à mesma depreciação.
Contudo, como já foi dito, a perspetiva analítica e metodológica constitui, apenas, uma forma de ver o Mundo. Eventualmente mais avançada. Se quisermos, esclarecida.
Mas, com certeza, não absoluta.
E não, necessariamente, mais legítima e respeitável que a perspectiva de um qualquer crente.
Afinal, nas sociedades humanas, nem todo o saber assenta nas razões da razão.
Alguns suportam-se em razões de inspiração, pressentimento e intuição. Vistas, facilmente, como místicas e iluminadas.


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