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Espaço de comunicação que se espera interactivo, este é um instrumento que permite estar próximo de amigos,presentes e futuros, cujas contingências da vida tornam distantes mas nem por isso menos merecedores de estimas e afectos.


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quinta-feira, 19 de julho de 2018

A MULHER DO RIBATEJO : MITOS E EQUíVOCOS

Pode-se dizer-se que, tradicionalmente, o papel social da mulher do Ribatejo tem sido objeto de vários equívocos? - O equívoco, afinal, é só um: o de que os carateres de personalidade próprios da mulher ribatejana, que a tradição consagra, eram particularmente humildes e subservientes. Daí decorre, depois, todo um conjunto de erróneas implicações sociais e até culturais. Na verdade, não só tal configuração psicossocial não corresponde à realidade, como a mesma se nos revela aqui, pelo contrário, uma personagem bem mais autónoma e afirmativa; se comparada com a mulher de outras regiões. E, arriscar-me ia a dizer, com a mulher das outras regiões! Mas, se é assim, como se chegou aí? Digamos que a suposta subserviência da mulher ribatejana surge como contraponto à utilização exacerbada do “mito do campino” e decorre das supostas virilidades e destemores do “homem do Ribatejo” consubstanciado este, precisamente, na figura do campino. E se o campino foi elevado a arquétipo ribatejano no contexto dos arquétipos regionais que o Estado Novo promoveu como expressão sublimada das virtudes da raça (e, no seu caso, como símbolo do cavaleiro português de antanho que garantiu a independência nacional nos momentos difíceis de afirmação nacionalista), ao mesmo foram-lhe imputadas diversas e elevadas qualidades e virtudes que, gradualmente, se foram mitificando. E se, como diz o povo, “só pode haver um galo numa capoeira”, o estatuto da mulher irá sofrer por arrastamento inverso. Virá, então, a ser encarada como alguém particularmente passivo e obediente. Situação, que convenhamos, não correspondia, de todo, à realidade existente. Como poderíamos então, em termos de estatuto social, caracterizar a mulher do Ribatejo? Esclareça-se que falamos, essencialmente, das “mulheres do campo” que, durante séculos, marcaram, social e laboralmente, toda a região; nomeadamente o Vale do Tejo a que, em tempos passados, se chamava Borda d´Água. Trabalhadoras jornaleiras, como o homem. Que, como este, tinham a sua praça todas as semanas, onde iam vender a sua força de trabalho. Aí, discutiam preços e condições com capatazes e proprietários. Daí, saíam para trabalhar, afastadas dos maridos, às vezes por dezenas de quilómetros. Labutando, toda a semana, lado a lado com outras mulheres (ou, até, com homens) de outras localidades. Pessoas que, recorrentemente, tinham de reafirmar (alto e bom som) a sua fama de boas trabalhadoras; pois disso dependiam trabalho e salário. Algumas, ainda, eram capatazas, habituadas a comandar grupos de trabalhadoras, servindo de porta-voz perante o feitor ou o proprietário, reivindicando remunerações ou condições de trabalho. Pessoas de opiniões firmes e decididas, extrovertidas e assertivas; expressando e exigindo maior autonomia social. Eram as mulheres do campo, camponesas morenas de corpo robusto e pêlo na venta, de sonoras gargalhadas e língua afiada, temperadas da geada e do calor da lezíria. E até onde vai, afinal, essa autonomia? Não existe, aqui, uma inversão social, esclareça-se. O homem continua a ser o chefe de família e a exprimir, de forma algumas vezes pública e violenta, esse estatuto. Mas a relação com a mulher e os filhos sofre de inegáveis caracteres subversivos, expressos familiar e comunitariamente. Digamos que a imposição dessa liderança é, neste caso, aceite menos pacificamente. O come e cala de tantas outras zonas do país é aqui, diversas vezes, substituído pelo, mais problemático, come, …e não cala! E de que maneira isso se refletia no dia-a-dia destas pessoas? Ao contrário do que emana da literatura regionalista, elevadora do homem ao tal papel de arquétipo regional (feito de virtudes várias e ausência de defeitos), pode dizer-se que a mulher ocupava, no Ribatejo, uma posição de género significativamente menos subordinada que noutras zonas do território nacional! O seu papel é mais marcante, tanto social, como profissionalmente! Proletária e jornaleira, a mesma emerge, aqui, das brumas de uma história local e regional (em grande parte por fazer), como disposta a liderar causas sociais e comunitárias diversas. Por exemplo, enquanto rapariga, na reivindicação do direito a escolher o conjugue ou, como mulher, na relação com o padre e a Igreja. Nestas situações e noutras, a mulher reivindica condições de ação e opinião muito pouco comuns na tradicionalidade feminina portuguesa. Nas atividades lúdicas, como as danças e os cantares, o seu papel surge significativamente valorizado. Tanto nas desgarradas (competições de improviso poético extremamente populares), como até em certas danças mais competitivas como o bailarico ou o fandango, parte considerável das rivalidades locais, explícitas ou implícitas, eram (ao contrário do que se pensou durante décadas), expressas numa perspectiva homem/mulher! Confirma-se, então, que a mulher também dançava o fandango? Naturalmente. De facto, não só parecem ter sido dançarinas espanholas que, no século XVIII, alimentaram especialmente a popularidade desta dança nos teatros lisboetas como, inclusive, disseminado já um pouco por todo o país, as descrições efetuadas por autores portugueses e estrangeiros, durante a segunda metade de setecentos, apresentam-no, quase sempre, como dançado entre homem e mulher, em pé de igualdade. Mais recentemente (de fins do século XIX até aos nossos dias) e mesmo sem a realização de um qualquer estudo global, tanto os estudos monográficos locais como as pesquisas minimamente sustentáveis (a propósito ou não) desenvolvidas por diversos grupos do Ribatejo constituem, disso, prova cabal. Como se compreende, então, que muitas representações folclóricas só recentemente, tenham aceite a participação feminina? É que, dentro do contexto que falámos, a identificação mítica do fandango com o homem do Ribatejo, dotado este dos tais caracteres psíquicos excecionais de força, vigor, destemor e virilidade, tornava naturalmente interdita, à mulher, a partilha de valências de caráter que lhe eram atribuídas. A sublimação mítica idealizou, aliás, cenários pictóricos em que o campino, dançando o fandango, seduz e conquista a mulher; completamente rendida aos encantos do bailador. Na verdade, esta interpretação; pelo carácter restritivo e determinista das complexidades da natureza humana, pelo papel estritamente passivo (e de alguma forma servil) da mulher e pela redução de um sentimento à mera avaliação de um desempenho artístico, constitui, em rigor, um autêntico disparate! Não obstante, persistiu até hoje. E foi criando, contra todas as evidências, um insensato senso-comum. E porque é que nunca se percebeu isto? Essa é, afinal, a grande questão: - Primeiro porque durante décadas ninguém estudou o Ribatejo. Nem sequer o próprio campino foi objeto de estudo. Pelo contrário, era apresentado, apenas, como um símbolo mítico regionalista: alguém que tinha nascido já adulto e montado: cavalgando, garbosamente, pela vastidão da lezíria. Dito de outra maneira, o Ribatejo era o campino e, este, o “Homem do Ribatejo”. O fandango era sua dança. Os touros, o seu desígnio. - E, convenhamos, quando nas décadas de oitenta/noventa isso foi sendo, em parte, ultrapassado, já tais questões de género não eram tão evidentes, O modelo laboral tradicional tinha-se já, em grande parte, transformado. - Depois, ainda, porque os ranchos folclóricos, na sua grande parte, não possuem nem as capacidades técnicas nem sequer interesse especial no estudo das condições de género. - E, finalmente, porque os mitos exercem uma ação desertificadora em seu redor. A mitificação positiva do homem arrastou, afinal, uma gradual mitificação negativa da mulher. E os mitos, após, implantados, são extremamente difíceis de extirpar. É muito grave se tal equívoco persistir no tempo? Bom, para já, é uma cedência ao erro e um atropelo à verdade. Naturalmente injusto para os registos memoriais da mulher ribatejana; cuja vida constituía nesses tempos, isso sim, um paradigma épico de esforço e superação. E, principalmente, não contribui em nada (muito pelo contrário) para melhor perceber a realidade social e cultural de género, no nosso país e nossa região. Afinal, só amamos aquilo que conhecemos. E só conhecemos aquilo a que damos suficiente importância, para o olhar com olhos de ver. Pode-se dizer-se que, tradicionalmente, o papel social da mulher do Ribatejo tem sido objeto de vários equívocos? - O equívoco, afinal, é só um: o de que os carateres de personalidade próprios da mulher ribatejana, que a tradição consagra, eram particularmente humildes e subservientes. Daí decorre, depois, todo um conjunto de erróneas implicações sociais e até culturais. Na verdade, não só tal configuração psicossocial não corresponde à realidade, como a mesma se nos revela aqui, pelo contrário, uma personagem bem mais autónoma e afirmativa; se comparada com a mulher de outras regiões. E, arriscar-me ia a dizer, com a mulher das outras regiões! Mas, se é assim, como se chegou aí? Digamos que a suposta subserviência da mulher ribatejana surge como contraponto à utilização exacerbada do “mito do campino” e decorre das supostas virilidades e destemores do “homem do Ribatejo” consubstanciado este, precisamente, na figura do campino. E se o campino foi elevado a arquétipo ribatejano no contexto dos arquétipos regionais que o Estado Novo promoveu como expressão sublimada das virtudes da raça (e, no seu caso, como símbolo do cavaleiro português de antanho que garantiu a independência nacional nos momentos difíceis de afirmação nacionalista), ao mesmo foram-lhe imputadas diversas e elevadas qualidades e virtudes que, gradualmente, se foram mitificando. E se, como diz o povo, “só pode haver um galo numa capoeira”, o estatuto da mulher irá sofrer por arrastamento inverso. Virá, então, a ser encarada como alguém particularmente passivo e obediente. Situação, que convenhamos, não correspondia, de todo, à realidade existente. Como poderíamos então, em termos de estatuto social, caracterizar a mulher do Ribatejo? Esclareça-se que falamos, essencialmente, das “mulheres do campo” que, durante séculos, marcaram, social e laboralmente, toda a região; nomeadamente o Vale do Tejo a que, em tempos passados, se chamava Borda d´Água. Trabalhadoras jornaleiras, como o homem. Que, como este, tinham a sua praça todas as semanas, onde iam vender a sua força de trabalho. Aí, discutiam preços e condições com capatazes e proprietários. Daí, saíam para trabalhar, afastadas dos maridos, às vezes por dezenas de quilómetros. Labutando, toda a semana, lado a lado com outras mulheres (ou, até, com homens) de outras localidades. Pessoas que, recorrentemente, tinham de reafirmar (alto e bom som) a sua fama de boas trabalhadoras; pois disso dependiam trabalho e salário. Algumas, ainda, eram capatazas, habituadas a comandar grupos de trabalhadoras, servindo de porta-voz perante o feitor ou o proprietário, reivindicando remunerações ou condições de trabalho. Pessoas de opiniões firmes e decididas, extrovertidas e assertivas; expressando e exigindo maior autonomia social. Eram as mulheres do campo, camponesas morenas de corpo robusto e pêlo na venta, de sonoras gargalhadas e língua afiada, temperadas da geada e do calor da lezíria. E até onde vai, afinal, essa autonomia? Não existe, aqui, uma inversão social, esclareça-se. O homem continua a ser o chefe de família e a exprimir, de forma algumas vezes pública e violenta, esse estatuto. Mas a relação com a mulher e os filhos sofre de inegáveis caracteres subversivos, expressos familiar e comunitariamente. Digamos que a imposição dessa liderança é, neste caso, aceite menos pacificamente. O come e cala de tantas outras zonas do país é aqui, diversas vezes, substituído pelo, mais problemático, come, …e não cala! E de que maneira isso se refletia no dia-a-dia destas pessoas? Ao contrário do que emana da literatura regionalista, elevadora do homem ao tal papel de arquétipo regional (feito de virtudes várias e ausência de defeitos), pode dizer-se que a mulher ocupava, no Ribatejo, uma posição de género significativamente menos subordinada que noutras zonas do território nacional! O seu papel é mais marcante, tanto social, como profissionalmente! Proletária e jornaleira, a mesma emerge, aqui, das brumas de uma história local e regional (em grande parte por fazer), como disposta a liderar causas sociais e comunitárias diversas. Por exemplo, enquanto rapariga, na reivindicação do direito a escolher o conjugue ou, como mulher, na relação com o padre e a Igreja. Nestas situações e noutras, a mulher reivindica condições de ação e opinião muito pouco comuns na tradicionalidade feminina portuguesa. Nas atividades lúdicas, como as danças e os cantares, o seu papel surge significativamente valorizado. Tanto nas desgarradas (competições de improviso poético extremamente populares), como até em certas danças mais competitivas como o bailarico ou o fandango, parte considerável das rivalidades locais, explícitas ou implícitas, eram (ao contrário do que se pensou durante décadas), expressas numa perspectiva homem/mulher! Confirma-se, então, que a mulher também dançava o fandango? Naturalmente. De facto, não só parecem ter sido dançarinas espanholas que, no século XVIII, alimentaram especialmente a popularidade desta dança nos teatros lisboetas como, inclusive, disseminado já um pouco por todo o país, as descrições efetuadas por autores portugueses e estrangeiros, durante a segunda metade de setecentos, apresentam-no, quase sempre, como dançado entre homem e mulher, em pé de igualdade. Mais recentemente (de fins do século XIX até aos nossos dias) e mesmo sem a realização de um qualquer estudo global, tanto os estudos monográficos locais como as pesquisas minimamente sustentáveis (a propósito ou não) desenvolvidas por diversos grupos do Ribatejo constituem, disso, prova cabal. Como se compreende, então, que muitas representações folclóricas só recentemente, tenham aceite a participação feminina? É que, dentro do contexto que falámos, a identificação mítica do fandango com o homem do Ribatejo, dotado este dos tais caracteres psíquicos excecionais de força, vigor, destemor e virilidade, tornava naturalmente interdita, à mulher, a partilha de valências de caráter que lhe eram atribuídas. A sublimação mítica idealizou, aliás, cenários pictóricos em que o campino, dançando o fandango, seduz e conquista a mulher; completamente rendida aos encantos do bailador. Na verdade, esta interpretação; pelo carácter restritivo e determinista das complexidades da natureza humana, pelo papel estritamente passivo (e de alguma forma servil) da mulher e pela redução de um sentimento à mera avaliação de um desempenho artístico, constitui, em rigor, um autêntico disparate! Não obstante, persistiu até hoje. E foi criando, contra todas as evidências, um insensato senso-comum. E porque é que nunca se percebeu isto? Essa é, afinal, a grande questão: - Primeiro porque durante décadas ninguém estudou o Ribatejo. Nem sequer o próprio campino foi objeto de estudo. Pelo contrário, era apresentado, apenas, como um símbolo mítico regionalista: alguém que tinha nascido já adulto e montado: cavalgando, garbosamente, pela vastidão da lezíria. Dito de outra maneira, o Ribatejo era o campino e, este, o “Homem do Ribatejo”. O fandango era sua dança. Os touros, o seu desígnio. - E, convenhamos, quando nas décadas de oitenta/noventa isso foi sendo, em parte, ultrapassado, já tais questões de género não eram tão evidentes, O modelo laboral tradicional tinha-se já, em grande parte, transformado. - Depois, ainda, porque os ranchos folclóricos, na sua grande parte, não possuem nem as capacidades técnicas nem sequer interesse especial no estudo das condições de género. - E, finalmente, porque os mitos exercem uma ação desertificadora em seu redor. A mitificação positiva do homem arrastou, afinal, uma gradual mitificação negativa da mulher. E os mitos, após, implantados, são extremamente difíceis de extirpar. É muito grave se tal equívoco persistir no tempo? Bom, para já, é uma cedência ao erro e um atropelo à verdade. Naturalmente injusto para os registos memoriais da mulher ribatejana; cuja vida constituía nesses tempos, isso sim, um paradigma épico de esforço e superação. E, principalmente, não contribui em nada (muito pelo contrário) para melhor perceber a realidade social e cultural de género, no nosso país e nossa região. Afinal, só amamos aquilo que conhecemos. E só conhecemos aquilo a que damos suficiente importância, para o olhar com olhos de ver.

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