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Espaço de comunicação que se espera interactivo, este é um instrumento que permite estar próximo de amigos,presentes e futuros, cujas contingências da vida tornam distantes mas nem por isso menos merecedores de estimas e afectos.


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sábado, 15 de outubro de 2016

O Discurso



O vereador Felisberto não estava à espera disto. Vindo em representação do Município ao aniversário da Sociedade Recreativa e Cultural Reguenguense, era suposto tudo não passar de mais uma oportunidade de salutar convivência gastronómica em volta de uma substancial sopa de pedra e respectivas febras assadas, devidamente regadas, é claro, com “uma pomada de estalo” e concluídas com o já tradicional “digestivo caseiro” de comprovada qualidade.
Contudo o “Chico Faneco”, presidente da Associação (com pretensões locais de carreira política), não pretende deixar passar em claro a presença do vereador, sem que o mesmo profira algumas palavras de elogio à instituição, que aquele, naturalmente, pretende capitalizar em seu proveito.
Um pouco zonzo com os treze graus do “tintol” consumido, o vereador ergue-se lentamente. 
Curiosamente a sala de baile onde se realiza a refeição parece agora um pouco instável. O chão apresenta alguma fluidez, parecendo tremer um pouco ao sabor dos aplausos que aqui e ali emergem, numa assistência, contudo, maioritariamente indiferente. 
Disfarçadamente agarra-se à mesa embora, curiosamente, também ela não pareça muito firme.
O levantar desencadeia um proliferar de “shius”, pronunciados entredentes, mas cuja eficácia esbarra na disposição eufórica e incontrolável dos comensais. Eis quando um berro colossal do “Faneco”, seguido dum breve mas firme “puxão de orelhas” produzido com cara de poucos amigos, corta cerce a maioria das conversas e consegue alguns momentos de silêncio.
O vereador tosse circunspecto provocando assim, de alguma maneira, um adensar das coagidas expectativas. Lentamente e algo contrariada, a sala aquieta-se.
Entretanto o autarca passa mentalmente em revista o que sabe e não sabe sobre a instituição. A inquietação percorre-o quando se apercebe que não sabe nada de nada exceptuando, é claro, o nome e os anos de existência que da parede do fundo ressaltam brilhantes em letras enormes e fluorescentes.
Reage contudo rapidamente. Não é por acaso que ele, o filho do “Tonho Ferreiro” da Várzea Longa chegou onde chegou. Aliás, desde que se levantou, sente-se até mais leve e mais liberto. Capaz, na verdade, de proferir um discurso inesquecível!
“Caros amigos, concidadãos reguenguenses, estou aqui para lhes trazer as felicitações do Senhor Presidente da Câmara e informá-los que a autarquia olha com particular atenção e desvelo a acção desenvolvida por esta casa nos seus (olha de soslaio para a inscrição cintilante) 45 anos de uma grandiosa e profícua existência”.
Respira fundo, e pisca os olhos tentando clarear uma visão teimosamente pouco nítida: 
“Porque todos não somos demais para fazer deste concelho, um lugar onde apeteça viver. E para isso contamos como todos os reguenguenses, particularmente com aqueles organizados em torno desta prestigiada associação”.
Pigarreia, aclarando a garganta, enquanto nos olhares algo carrancudos da assistência perpassa uma expressão de relutante paciência: 
”Deste modo a instituição que eu represento faz questão de afirmar de forma clara e inequívoca, a sua solidariedade e reconhecimento para com os esforços aqui desenvolvidos na persecução e promoção da cultura e do bem público.”
Aqui faz uma pausa, aproveitando para emudecer a garganta com mais um gole de “alvarinho” e, com um gesto displicentemente teatral, declina extemporâneos aplausos de alguns mais impacientes; 
“Cultura e bem público, promovidos com sacrifício pessoal e familiar por sócios e dirigentes (e aqui inclina a cabeça para o “Faneco” que, ufano mas reservado, agradece formalmente) da Sociedade Musical Regenguense!”
Um burburinho de escandaloso desagrado percorre a sala à referência nominal aos detestados rivais da “f´larmónica”, enquanto alguns mais exaltados, afoitos ou vulneráveis ao efeito da “pinga”, gritam ostensivamente a necessária rectificação; “Recreativa e Cultural!”
Mas a gafe não inibe o Felisberto cuja disposição medeia agora entre a euforia da inconsciência e a percepção vaga de uma realidade cada vez mais distante.
“Ou isso,...” concede com indiferença!
O ambiente está agora mais enevoado. Na disposição ofendida da assistência que vê, aliás, eternizar-se o reinício do festim mas, igualmente, na visão cada vez mais toldada do orador. As suas pernas apresentam já uma curiosa tremedeira. A cadeira surge como uma desejada tábua de salvação!
Teatralmente levanta os braços ensaiando o clímax final: 
”Estais assim todos de parabéns: por aquilo que fizestes no passado e fareis no futuro!”
E numa voz que cada vez se aproxima mais das tonalidades gritantes termina de dedo em riste em jeito de apoteose: “Porque vós sois o passado e o futuro: o ying e o yang do associativismo, o alfa e o ómega do voluntariado!”
E, desequilibrado pelo balanço final da oratória, mal tem tempo de cair pesadamente sobre a cadeira que, contudo, reagindo à sobrecarga de esforço, se esfrangalha literalmente provocando uma aparatosa queda.
Uma trovoada de alegres aplausos abate-se, finalmente, sobre a sala!

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