*********************************************************************************************************************************************************************

Espaço de comunicação que se espera interactivo, este é um instrumento que permite estar próximo de amigos,presentes e futuros, cujas contingências da vida tornam distantes mas nem por isso menos merecedores de estimas e afectos.


**********************************************************************************************************************************************************************


terça-feira, 15 de março de 2016

Estigmas e preconceitos



Ao contrário do que se verifica noutros países, em Portugal, a cultura tradicional e os meios académicos vivem de costas voltadas, mantendo entre si uma fronteira de preconceitos que contextos históricos, relativamente recentes, ajudam a perceber.
Movimentada maioritariamente por aquilo a que usualmente se chama ranchos folclóricos (e mais correto seria chamar grupos ou agrupamentos de folclore) a pesquisa e divulgação do cultura tradicional portuguesa tem-se caraterizado por uma ação quase estritamente dirigida para o espetáculo (de preferência frenético e pitoresco), surgindo, assim, a eventual investigação (quando existe), mais como um meio ocasional do que como um fim em si próprio.
Naturalmente, quando se servem propósitos de espetacularidade, o princípio da objetividade que deve presidir a qualquer pesquisa/divulgação é fortemente afetado. O rigor das pesquisas, da análise documental e dos pressupostos da divulgação, tornam-se  incipientes ou simplesmente inexistentes.
Este aspeto, aliado à opção fóssil da grande maioria do conteúdo cultural que os agrupamentos pretendem e assumem representar e, ainda, à imagem que persiste do folclore enquanto criação panfletária do Estado Novo, ajuda a explicar porquê os meios académicos olham com evidente menosprezo esta área da cultura popular.
Atitude à qual os responsáveis do movimento folclórico respondem do mesmo modo.
Não com menosprezo, mas com alheamento e desconfiança. Olhando para os académicos como corpos estranhos ao conhecimento tradicional; despojados que estão do conhecimento vivencial de experiência feito, portadores apenas do saber livresco, não fundamentado na experiência direta e pessoal.
E exteriores, ainda, ao conhecimento típico do laborioso folclorista/etnógrafo local: uma vida ao serviço de uma pesquisa quase estritamente oral, num saber descritivo, quantitativo e terminológico.
Subjacente a esta atitude existe, ainda, uma inconfessada tendência para ver os mesmos como alguém que, de uma forma ou doutra, ameaçam o estatuto dos atuais dirigentes e, em última instância, o seu precioso lugar.
Portanto, enquanto se recorre aos mesmos, esporádica e pontualmente, para prestigiar alguma realização pretensamente refletiva e analítica (quase sempre em faz de contas coloquiais ou congressionais, para compor calendário) vai-se reforçando (para consumo interno) o discurso da superioridade do saber prático e vivido face ao saber teórico e escolástico.
E, assim, vai o Folclore Português alegremente fluindo ao sabor das contingências opinativas dos seus (assim considerados) especialistas: quase sempre pomposamente denominados “conselheiros técnicos”. Personagens emergentes dos agrupamentos folclóricos; líderes locais tornados regionais ou nacionais, de forte personalidade e prosaico conhecimento.
Eis, assim, porquê a área da cultura popular que mais gente movimenta neste país e a área por excelência da produção do saber, vivem de costas voltadas.
Numa dicotomia de rejeição igualmente disparatada.
Uns deixando cada vez mais (se é que tal é possível) o objeto do seu trabalho ser menorizado e destituído de qualquer valor para lá da sua função social e lúdica.
Outros, deixando entregues a si próprios a grande massa de agentes culturais* que se debruçam, afinal, sobre as nossas raízes.
Importante seria que essa “grande massa” refletisse uma mais rigorosa análise e reflexão.
Condição em que os meios académicos deveriam ter uma importante palavra a dizer.
Desde que, naturalmente, abandonassem os preconceitos**.
E deixassem de ter uma atitude narcisística de sobranceria.
Que só lhes fica mal.

*Aliás mesmo que reduzíssemos o milhar e meio de agrupamentos ditos folclóricos à uma ou duas centenas que desempenham um verdadeiro e sistemático papel de pesquisa e divulgação da cultura local e regional, mesmo assim, esta continuariam a ser, entre nós, a área cultural que mais gente movimenta.
**Nem todos os sectores académicos partilham de tal atitude, reconheça-se. Apenas, dir-se-á, os suficientes para fazerem senso-comum.




Sem comentários:

Enviar um comentário