Ao
contrário do que se verifica noutros países, em Portugal, a cultura tradicional
e os meios académicos vivem de costas voltadas, mantendo entre si uma fronteira
de preconceitos que contextos históricos, relativamente recentes, ajudam a
perceber.
Movimentada
maioritariamente por aquilo a que usualmente se chama ranchos folclóricos (e
mais correto seria chamar grupos ou agrupamentos de folclore) a pesquisa e
divulgação do cultura tradicional portuguesa tem-se caraterizado por uma ação
quase estritamente dirigida para o espetáculo (de preferência frenético e
pitoresco), surgindo, assim, a eventual investigação (quando existe), mais como
um meio ocasional do que como um fim em si próprio.
Naturalmente,
quando se servem propósitos de espetacularidade, o princípio da objetividade
que deve presidir a qualquer pesquisa/divulgação é fortemente afetado. O rigor das
pesquisas, da análise documental e dos pressupostos da divulgação, tornam-se incipientes ou simplesmente inexistentes.
Este
aspeto, aliado à opção fóssil da grande maioria do conteúdo cultural que os
agrupamentos pretendem e assumem representar e, ainda, à imagem que persiste do
folclore enquanto criação panfletária do Estado Novo, ajuda a explicar porquê os
meios académicos olham com evidente menosprezo esta área da cultura popular.
Atitude
à qual os responsáveis do movimento folclórico respondem do mesmo modo.
Não
com menosprezo, mas com alheamento e desconfiança. Olhando para os académicos
como corpos estranhos ao conhecimento tradicional; despojados que estão do
conhecimento vivencial de experiência feito, portadores apenas do saber
livresco, não fundamentado na experiência direta e pessoal.
E
exteriores, ainda, ao conhecimento típico do laborioso folclorista/etnógrafo
local: uma vida ao serviço de uma pesquisa quase estritamente oral, num saber
descritivo, quantitativo e terminológico.
Subjacente
a esta atitude existe, ainda, uma inconfessada tendência para ver os mesmos
como alguém que, de uma forma ou doutra, ameaçam o estatuto dos atuais
dirigentes e, em última instância, o seu precioso lugar.
Portanto,
enquanto se recorre aos mesmos, esporádica e pontualmente, para prestigiar
alguma realização pretensamente refletiva e analítica (quase sempre em faz de
contas coloquiais ou congressionais, para compor calendário) vai-se reforçando
(para consumo interno) o discurso da superioridade do saber prático e vivido
face ao saber teórico e escolástico.
E,
assim, vai o Folclore Português alegremente fluindo ao sabor das contingências
opinativas dos seus (assim considerados) especialistas: quase sempre pomposamente
denominados “conselheiros técnicos”. Personagens emergentes dos agrupamentos
folclóricos; líderes locais tornados regionais ou nacionais, de forte
personalidade e prosaico conhecimento.
Eis,
assim, porquê a área da cultura popular que mais gente movimenta neste país e a
área por excelência da produção do saber, vivem de costas voltadas.
Numa
dicotomia de rejeição igualmente disparatada.
Uns
deixando cada vez mais (se é que tal é possível) o objeto do seu trabalho ser
menorizado e destituído de qualquer valor para lá da sua função social e
lúdica.
Outros,
deixando entregues a si próprios a grande massa de agentes culturais* que se
debruçam, afinal, sobre as nossas raízes.
Importante
seria que essa “grande massa” refletisse uma mais rigorosa análise e reflexão.
Condição
em que os meios académicos deveriam ter uma importante palavra a dizer.
Desde
que, naturalmente, abandonassem os preconceitos**.
E
deixassem de ter uma atitude narcisística de sobranceria.
Que
só lhes fica mal.
*Aliás mesmo que reduzíssemos
o milhar e meio de agrupamentos ditos folclóricos à uma ou duas centenas que
desempenham um verdadeiro e sistemático papel de pesquisa e divulgação da
cultura local e regional, mesmo assim, esta continuariam a ser, entre nós, a área
cultural que mais gente movimenta.
**Nem todos os
sectores académicos partilham de tal atitude, reconheça-se. Apenas, dir-se-á, os
suficientes para fazerem senso-comum.
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