Um dos problemas da análise dos comportamentos sociais é, muitas vezes
(se quisermos ser honestos e rigorosos) nos obrigarmos a considerações
politicamente incorrectas ou socialmente inconvenientes. Pouco populistas, se
quisermos!
Admitamos que eu dizia, de forma clara e indubitável, que um dos
problemas do Movimento Folclórico Nacional era ser constituído por pessoas de
incipiente formação cultural e (para lá da dimensão local) sem estatuto social significativo!
Admitamos! Provavelmente cairia o Carmo e a Trindade!
E, afinal, é mesmo disso que se trata!
O problema nem é, em rigor, que muitos dos mesmos (emergindo, como se
sabe, de lideranças locais) constituam pessoas sem estatuto intelectual e formação
académica e, ainda, sem participar do desempenho de cargos ou funções valorizadas
que lhes confiram um indubitável prestígio na sociedade civil. Só assim,
afinal, podem estar próximos da matriz cultural que pretendem representar. Ter conhecimentos
vivenciais directos, muitas vezes empíricos, daquilo que, hoje, apresentam como
espectáculo.
Nem sequer que o sejam maioritariamente.
O problema é que o sejam quase todos!
O que confere a este sector da cultura tradicional determinados atavismos
(como que resultantes de um evanescente complexo de inferioridade) que
impregnam as suas acções e atitudes e, reactivamente, os levam algumas vezes a
pretenderem ingenuamente “colocar-se em bicos de pés”, adoptando por exemplo
terminologias várias, que entendem como “soft”, tomadas de empréstimo,
preferencialmente, de outras áreas do mundo do espectáculo.
Não falo já do prosaico “óscar do folclore” que tem pelo menos a vantagem
de deixar perceber que as organizações internacionais não parecem mais esclarecidas
que as suas congéneres nacionais. Nem daqueles que, indignados, continuam a
reagir contra a utilização pejorativa do termo ”folclore” como se houvesse
alguma hipótese de êxito (mesmo que irrisória) contra uma noção conceptual que entretanto
se generalizou como senso-comum.
Nem sequer de alguns outros que (no uso do seu mais completo direito, naturalmente)
optam, simplesmente, por mudar a denominação do seu agrupamento para “etnográfico”
ou (recentemente) para outras denominações mais peculiares, não por razões que têm
a ver com a natureza da actividade desenvolvida, mas pretendendo assim, de
alguma maneira, libertarem-se do estigma que sentem envolver a actividade
folclórica!
Falo daqueles, por exemplo, que denominam os músicos que fazem parte
dos agrupamentos (representativos de uma realidade tradicional em que os ditos,
afinal, se resumiam quase sempre a um ou dois) não de “músicos” ou “tocadores” ou
qualquer outra denominação mais ou menos popular, mas sim, de “tocata”; termo
importado da musicologia erudita e que, como se sabe, nem sequer respeita, aí,
a quaisquer instrumentistas, mas sim a uma determinada peça musical.
“Tocata” esta, curiosamente, que faz hoje parte dos dicionários de
português mais recentes como significando, igualmente, “conjunto de músicos populares”!
Décadas de utilização (embora inadequada) no mundo folclórico,
conferiu-lhe a legitimidade que até aí não tinha e que decorre (em qualquer
língua) do uso corrente das palavras.
Nada portanto, contra a dita, a não ser, é claro, a constatação de que
tal resultou de uma estapafúrdia pretensão inicial!
Mas se os grupos folclóricos possuem “tocatas”, os respectivos espectáculos
não podiam ficar atrás e como os termos “espectáculo” ou “festival” estão muito
vistos e, às “mostras”, “demonstrações”, “reconstituições”, “representações” e
quejandos, falta a conveniente dimensão cromática, deitou-se mão à mais
pretensiosa terminologia “gala” (tomada de empréstimo de espectáculos musicais
e artísticos de outra natureza e vocação) para denominar representações
folclóricas a quem se pretende conferir um estatuto especial.
Nada contra as “galas”, claro! Apenas contra a razão subjacente à
escolha de tal nomenclatura; uma simplória pretensão de afirmação que prefere
melhorar a forma (e quantas vezes apenas a forma terminológica) em vez de, o
que seria bem mais importante, incidir os seus esforços na melhoria do conteúdo!
De forma, então sim, a melhorar, a partir daí, a imagem social desta
área cultural.
De maneira, a que não continuasse a ser necessário recorrer a
macarrónicos subterfúgios!
Numa estratégia que, convenhamos, tem tanto de ineficaz como de pacóvia!
Que, ingenuamente, acredita que envolver a cultura popular em roupagens
finas lhe aumenta a qualidade e credibilidade!
Própria de personagens que não obstante recorrentes (e quantas vezes lamechas)
declarações de amor à cultura tradicional, parecem ter vergonha de usar as respectivas
terminologias!
Que, aliás, no nosso país (de micro-culturas feito), são
particularmente ricas e diversificadas.
Pois…
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